Résumés
Résumé
Pour comprendre le tournant autoritaire du néolibéralisme au Brésil sous le gouvernement Bolsonaro, l’article examine comment les réformes néolibérales sont composées avec une rationalité politique historiquement située : la logique militaire de la guerre contre l’ennemi interne. L’article énumère d’abord les projets de réforme néolibérale proposés par le ministre de l’économie Paulo Guedes au cours des trois premiers mois de son administration. Ensuite, il cartographie la participation des militaires au gouvernement Bolsonaro et analyse l’émergence de la logique militaire de la guerre contre l’ennemi interne pendant la Dictature militaire (1964-1985), sa métamorphose en guerre contre la drogue dans la Nouvelle République et son actualisation par des opérations de “pacification”. Enfin, l’article montre comment les rationalités néolibérales et militaires se composent dans le tournant autoritaire brésilien, créant, d’un côté, un renforcement mutuel et, de l’autre, des blocages qui mettent la démocratie brésilienne en risque.
Mots-clés :
- Bolsonaro,
- Logique militaire de la guerre contre l’ennemi interne,
- Tournant autoritaire au Brésil,
- Néolibéralisme
Abstract
To understand the authoritarian turn of neoliberalism in Brazil during the Bolsonaro government, the article examines how neoliberal reforms are composed with a historically situated political rationality: the military logic of war on the internal enemy. The article first lists the neoliberal reform projects proposed by Economy Minister Paulo Guedes during the first three months of his administration. Second, it maps the participation of the military in the Bolsonaro government and analyzes the emergence of the military logic of war on the internal enemy during the Military Dictatorship (1964-1985), its metamorphosis in war on drugs throughout the New Republic and its updating through “pacification” operations. Finally, the article shows how neoliberal and military rationalities are composed in the Brazilian authoritarian turn, creating, on one side, mutual reinforcement, and, on the other, blockades that put Brazilian democracy in check.
Keywords:
- Bolsonaro,
- Neoliberalism,
- Authoritarian turn in Brazil,
- Military logic of the war on the internal enemy
Corps de l’article
Ainda durante a pré-campanha para presidente, um ruralista justificou do seguinte modo a adesão do agronegócio a Jair Bolsonaro em detrimento do candidato de centro direita, Geraldo Alckmin :
Geraldo é um piloto de [Boeing] 747 da Lufthansa: não vai chacoalhar, vai jantar, atravessar o Atlântico bem tranquilo. Só que não estamos voando em céu de brigadeiro, estamos voando sobre a Síria. O Bolsonaro é um piloto de [caça] F-16. O Brasil precisa de um piloto de F-16.
(«Ruralista troca Alckmin por Bolsonaro e diz que tempo de tucano passou» 2018)
A metáfora do caça F-16 joga luz sobre a combinação central presente no governo bolsonarista: metáfora da aceleração das reformas econômicas neoliberais, de um lado, e metáfora da máquina de guerra militar instalada na burocracia estatal, de outro.
Minha tese é que essa composição está se consolidando como parte importante do núcleo duro do governo, somando-se ainda ao grupo familiar e sua ligação com o neoconservadorismo internacional. Ainda que outros grupos político-sociais componham sua base, quais sejam, ruralistas, ativismo judicial e evangélicos, são de fato os três primeiros (economistas neoliberais ligados ao mercado financeiro, militares da reserva e neoconservadores) que assumem o protagonismo, ocupando progressivamente os cargos de alto escalão e submetendo os demais ministérios às suas demandas. Hoje já são 8 ministros e mais de 130 militares ocupando postos de destaque no primeiro, segundo e terceiro escalões e mais de 2.500 militares em cargos diversos de chefia e assessoria no governo, com um número crescente a cada crise política que se anuncia.
Para compreender a consolidação da virada autoritária do neoliberalismo brasileiro, portanto, é preciso observar como está se desenvolvendo essa hibridização entre reformas neoliberais, militarização da administração pública federal e conexões internacionais do neoconservadorismo. Nesse artigo, me atenho apenas à relação entre economistas e militares. Faço a ressalva de que esse enfoque é importante para compreender a consolidação, mas não a fase de transição, que foi marcada, em primeiro lugar, pelo ativismo judicial, resultando no impeachment e na permanente crise político-democrática, e, em segundo lugar, por uma campanha eleitoral bem-sucedida viabilizada pela ação de grupos bolsonaristas nas redes sociais, pelo apelo moralista-religioso dos evangélicos e pela temática da corrupção e da segurança pública. Nessa transição, também foi decisiva a cooperação de grupos propagandistas internacionais de direita, que financiaram a difusão da doutrina de livre mercado associada à campanha antipetista, valendo-se amplamente de fake news. O método político utilizado foi o mesmo do propagandista de Donald Trump, Steve Bannon, que, em sua cruzada antiglobalista internacional, viria mais tarde a apoiar Bolsonaro e a se aproximar de um de seus filhos e do ideólogo Olavo de Carvalho. Assim, o que parecia central no período de transição, inclusive no momento de formação do governo, parece se deslocar depois que o governo efetivamente começou, embora a disputa por espaço não cesse. A ala do ativismo judicial, por exemplo, a princípio converteu-se em braço jurídico e policial subordinado a essa composição central.
Considerando essa associação da vertente histórica local de racionalidade política autoritária, marcada pelo militarismo, com o neoliberalismo, este artigo pretende responder às seguintes questões:
Quais as principais reformas econômicas neoliberais levadas a cabo? Qual a racionalidade política historicamente situada que é portada por esse grupo de militares da reserva que chegaram ao poder? Como esta combinação entre neoliberalismo e militarização da burocracia estatal tem ocorrido, considerando tensões e confluências estratégicas entre as duas racionalidades políticas?
Reformas econômicas neoliberais
Nos últimos três governos (Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro), a equipe econômica foi alçada pela imprensa à condição de fiadores de governos com maior legitimidade do que os presidentes (eleitos ou não). Enquanto o núcleo político era e é alvo de duras críticas, os economistas liberais e sua agenda de contrarreformas são preservados e apresentados como saída para a crise econômica. O pressuposto é que os direitos sociais previstos pela Constituição de 1988 não cabem no PIB e que seria preciso adotar políticas de austeridade para conter a alta dos gastos públicos e retomar o crescimento. Com isso, as autoridades econômicas neoliberais assumem maior legitimidade do que os representantes políticos, vistos como populistas, irresponsáveis e corruptos.
Paulo Guedes, ministro da economia, é a autoridade da vez. Doutor pela Escola de Chicago e reivindicando a tradição dos “Chicagos Oldies”, tendo dado aula no Chile a convite de um membro do governo de Pinochet, Guedes foi visto como principal opção pelos candidatos liberais que se propunham como outsiders (antes de Bolsonaro, Luciano Huck). A razão era sua posição neoliberal intransigente associada ao fato de ele também ser um outsider em política, não tendo participado de governos anteriores nem tendo sido aliado das equipes de PT e PSDB que comandaram a economia brasileira nas últimas décadas. Ao invés de governos, Guedes se dedicou a fazer fortuna como sócio de bancos de investimento, a ser polemista de jornais e revistas de grande circulação e a cultivar ressentimentos com seus pares (Gaspar 2018).
O diagnóstico de Guedes da crise é que todas as tentativas de estabilização econômica do país nos últimos 40 anos não enfrentaram o que ele julga ser o maior dos males: o problema fiscal criado pela expansão descontrolada dos gastos públicos em relação ao PIB, causa profunda das diferentes disfunções financeiras ao longo do tempo. O momento presente estaria apresentando uma falsa estabilidade, pois, para conter a inflação, a adoção de juros altos combinada com câmbio sobrevalorizado resultaria em uma bola de neve de endividamento público. A razão do aumento dos gastos públicos seria a insistência na concepção de Estado como motor do crescimento, o que teria levado à estagnação e à corrupção na política. A saída, consequentemente, seria migrar para uma economia de mercado e fazer uma reforma do Estado. O resultado, segundo Guedes, seria um ciclo virtuoso de crescimento econômico, inclusão social, emprego, renda e arrecadação.
As medidas práticas propostas são as seguintes:
Reforma da previdência, com transição do modelo de repartição (em que os trabalhadores ativos pagam a aposentadoria da geração anterior) para o de capitalização (em que cada trabalhador faz uma poupança individual), que poderá ser realizada em bancos privados. Há ainda uma série de medidas pontuais, como aumento do tempo de contribuição e de idade mínima para homens e mulheres se aposentarem, redução ou eliminação da contribuição das empresas, redução percentual do valor do benefício de acordo com o tempo de contribuição, alíquotas de contribuição que crescem conforme os salários, limitação do valor da pensão por morte, separação entre previdência e assistência, oferecendo benefícios menores que um salário mínimo a quem não contribuiu, etc. Além da reforma, projetos de combate a fraudes na previdência aumentam as exigências de documentação e dificultam o acesso a benefícios.
Reforma trabalhista da “carteira verde amarela”. Essa nova carteira de trabalho será oferecida como “opção” aos trabalhadores jovens que ingressarem no mercado de trabalho e terá direitos reduzidos, conforme a negociação com o empregador. Com a alegação de que a Reforma Trabalhista feita por Michel Temer estabeleceu que o negociado deve prevalecer sobre o legislado, Guedes propõe que, no limite, se possa eliminar todos os direitos trabalhistas, incluindo férias, 13º salário, multa rescisória, etc. A questão é que a opção de contratação pela carteira verde e amarela seria muito mais da empresa do que do trabalhador, o que levaria ao fim dos direitos trabalhistas e da justiça do trabalho no médio prazo. A carteira também seria necessariamente vinculada ao regime de capitalização na previdência. A ideia seria reduzir ao mínimo os encargos trabalhistas e previdenciários das empresas.
Ataque às formas de financiamento de sindicatos, tornando obrigatória a autorização individual escrita do trabalhador para a contribuição e definindo pagamento por boleto bancário, não mais por desconto em folha de pagamento.
Reforma tributária. A ideia seria reduzir e simplificar os impostos federais, passando dos atuais 50 impostos para 6 ou 7. O peso sobre as empresas seria consideravelmente reduzido, passando, segundo exemplo do ministro, dos atuais 34% para 15% de imposto de renda. A redução seria compensada parcialmente por impostos sobre dividendos e juros sobre capital próprio, migrando da produção para os ganhos financeiros. O objetivo seria que a carga tributária geral passasse de 36% para cerca de 20% do PIB.
Desestatização do crédito e aumento da concorrência no sistema bancário. Segundo Guedes, o modelo anterior, em que os créditos oferecidos por bancos privados eram altos enquanto a taxa dos bancos públicos era subsidiada, além de financiar esses subsídios com o aumento da dívida pública, criava uma distorção em que os empresários por ele chamados de “piratas privados” e “amigos do rei” eram financiados pela população, promovendo transferência regressiva de renda e corrupção. Guedes quer receber de volta rapidamente os empréstimos públicos e privatizar a oferta de crédito, ampliando a liquidez dos bancos privados e intensificando a competição entre eles de modo a reduzir os juros. O Banco Central independente e blindado a interferências políticas deveria estabelecer as regras que garantiriam o aumento da concorrência no setor. A busca de empréstimos junto a organismos internacionais para financiar dívidas de estados e municípios e a atração de investimentos externos para obras de infraestrutura também são apoiadas. O crédito público subsidiado seria destinado apenas ao microcrédito e a programas sociais, como habitação popular. Abandona-se assim a política das campeãs nacionais com empréstimos do BNDES.
Fim dos subsídios. O governo pretende acabar ou reduzir amplamente os subsídios, desonerações e isenções fiscais oferecidos a diversos setores, mas especialmente para a indústria, vistos como uma forma de protecionismo econômico que reduz a competitividade internacional das empresas, que dá prejuízo aos cofres públicos e que favorece a corrupção. O governo também pretende cortar 50% do sistema S, uma contribuição compulsória sobre a folha de pagamento paga pelas empresas que se destina a entidades patronais para financiar cursos, treinamento profissional e lazer dos empregados.
Privatizações. Paulo Guedes propõe simplesmente privatizar todas as estatais brasileiras, embora reconheça que a ala militar lhe imponha restrições no caso da Petrobras, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, entre outras. Propõe também a venda de imóveis públicos. Seria a maneira de reduzir a dívida pública da União, de estados e de municípios, estancar a corrupção e fazer os juros da economia caírem, além de criar um fundo público para financiar a transição para o novo regime de previdência. As privatizações reduziriam também as despesas, particularmente com funcionalismo público. A redução de pessoal é defendida por corte de postos comissionados e fim da estabilidade do servidor público, criando a permissão para demissão por mau desempenho.
PEC do pacto federativo. Guedes defende a desvinculação, a desobrigação e a desindexação dos gastos públicos, que hoje definem a porcentagem do orçamento a ser gasta com educação, saúde, segurança, funcionalismo, etc. Os políticos se tornariam inteiramente responsáveis por 100% da alocação orçamentária, podendo não priorizar os serviços de bem-estar social, além de abrir ainda mais espaço para o lobby privado. A medida também prevê a descentralização orçamentária, aumentando os repasses da União para os entes federativos (estados e municípios). Seria uma maneira de resolver as dívidas locais, hoje fora de controle. Como deve ocorrer paralelamente uma redução da arrecadação, o ônus do desmonte do Estado de bem-estar recairia sobre os governos locais, estimulando o modelo da privatização dos serviços públicos e de vouchers para educação e saúde. Igualmente, os recursos públicos poderiam financiar todo tipo de conluio privado local, no velho modelo das oligarquias regionais brasileiras. Não à toa, a antiga empresa em que Paulo Guedes era sócio antes de virar ministro criou um fundo de private equity para investir em empresas de educação e saúde.
Plano de Equilíbrio Fiscal de estados e municípios. Nos moldes dos empréstimos do FMI, o plano propõe condicionar empréstimos a estados e municípios com alto nível de endividamento a corte de despesas, especialmente redução de incentivos fiscais e custos de pessoal, por meio, por exemplo, da redução da jornada de trabalho dos servidores e consequente redução proporcional de seus salários (constitucionalidade ainda a ser julgada). De acordo com os valores previstos dos cortes de gastos, seria permitido aos estados e municípios tomarem empréstimos com aval da União em bancos de modo a pagar fornecedores e salários atrasados. A liberação do valor seria feita em quatro tranches, uma por ano, condicionada à adoção das medidas de ajuste fiscal.
Abertura econômica. Por meio das medidas anteriores, vistas por Guedes como profundamente articuladas, o governo pretende criar condições de competitividade para as empresas brasileiras via redução de custos (encargos previdenciários e trabalhistas, impostos e juros). Em seguida, o governo quer promover a abertura econômica radical, com redução das tarifas de importação de 14% para 4%, integrando o país às cadeias produtivas internacionais. Outras medidas de mercado adjacentes podem ser complementares. No caso da indústria, a redução dos custos de energia seria buscada por meio de privatizações e aumento da competição no setor.
O plano de Paulo Guedes tem como objetivo principal, portanto, o aumento da competição de mercado e da competitividade das empresas instaladas no Brasil, além de favorecer amplamente o sistema financeiro privado com a transferência de recursos públicos da previdência via regime de capitalização. O custo seria assumido pelos trabalhadores, que perderiam direitos trabalhistas e sociais, com um horizonte de desmonte e privatização do já bastante insuficiente Estado de bem-estar social brasileiro. Quando questionado sobre pobreza ou questões sociais, Guedes se limita a afirmar que os Chicago Oldies pensavam também em capital humano, especialmente em investimentos em educação e saúde, e que ele beneficiará os trabalhadores ao criar empregos e garantir sua aposentaria.
É interessante notar que, apesar de ser considerado pela imprensa como pertencendo à ala moderada do governo ao lado de Moro e dos militares, as posições de Guedes são mais radicais até mesmo que as de Bolsonaro no que se refere à reforma da previdência, trabalhista e abertura econômica. A sensibilidade de Bolsonaro à sua base de seguidores nas redes sociais e aos ruralistas faz com que o presidente por vezes se coloque em posição social e economicamente mais consequente que a de Guedes. Mas importa dizer que são os planos de Guedes que seguem adiante, mesmo quando Bolsonaro manifesta seu desacordo. E assim Guedes reafirma o que chama de “liberal democracia”, buscando colocar um fim em qualquer dimensão social-democrata que havia sido consagrada no pacto democrático da Constituição de 1988.
Militarização da administração pública
A crise política desencadeada pelas denúncias de corrupção feitas pela operação Lava-Jato a partir de 2015 atingiu primeiro o PT e a centro-esquerda, então titulares do governo, mas depois se estendeu para a base de centro-direita do governo Temer, afetando, assim, todos os grandes partidos em todo o espectro ideológico. Até mesmo juízes das altas cortes de justiça se viram na necessidade de proteger antigos aliados partidários e aumentar o rigor contra outros políticos, mesmo que as provas apresentadas fossem discutíveis. Com isso, o sistema político democrático como um todo foi afetado, com denúncias de corrupção generalizada e crise institucional em todos os poderes (Executivo, Legislativo e topo do Judiciário). Foi assim que os militares foram trazidos de volta à política: primeiro, por meio de uma idealização por parte de alguns grupos conservadores da ditadura militar como anos dourados sem corrupção; segundo, como uma instituição externa à política que possui força de coerção para impor uma reforma moralizadora a ela. Assim, casando-se com o discurso do livre mercado, os defensores da militarização definiram uma posição à extrema direita do campo político e passaram a nomear todo o status quo democrático (inclusive o centro e a direita) como sendo de esquerda e corrupto.
O retorno dos militares ocorreu ainda antes da eleição de Bolsonaro, no governo de Michel Temer e em alguns governos estaduais e municipais. Buscando resgatar alguma legitimidade para o governo mais mal avaliado da República Nova e evitar sua deposição, Temer abriu espaço para os militares em postos sensíveis (Funai, Abin e recriação do GSI, gabinete da Casa Civil, Ministério da Defesa, Secretaria Nacional de Segurança Pública e outros cargos estratégicos no segundo escalão) e deu início de maneira abrupta a uma intervenção no Rio de Janeiro sob comando de um militar, além de 4 operações de garantia da lei e da ordem (GLO). O general Carlos Santos Cruz, atual ministro da secretaria de governo, teve passagem também no governo anterior, embora em cargo diferente.
No governo Bolsonaro, a falta de organicidade de seu partido (PSL, uma legenda de aluguel) e o gap geracional de quadros técnicos conservadores, que são ou velhos demais, da época da ditadura militar, ou muito jovens e despreparados, fez com que o governo tivesse que recorrer cada vez mais a oficiais da reserva. Por sua vez, há o interesse corporativo dos oficiais da reserva em obter cargos e remuneração do governo de modo a complementar suas aposentadorias. É preciso notar que 88% dos militares se aposentaram entre 45 e 54 anos (Corrêa 2019). Até manifestações pedindo cargos para o presidente foram organizadas por militares da reserva no início do mandato (Frazão 2019).
Por isso, hoje, os militares da reserva são o principal grupo no governo, chefiando 8 dos 22 ministérios (mais do que nos governos ditatoriais dos ex-presidentes Médici, Figueiredo e Geisel) e com cerca de 130 cargos comissionados distribuídos em diversos ministérios, bancos federais, autarquias, institutos e estatais, entre elas a Petrobrás («Mapa dos militares: onde estão os representantes das Forças Armadas no governo Bolsonaro.» 2019). Além disso, as nomeações seguiram aumentando nos últimos dias, incluindo exército (o maior contingente), marinha e aeronáutica.
Nessa militarização da administração pública, é preciso distinguir nuances (Matias 2004). Se há, de um lado, a simples necessidade de preencher funções burocráticas especializadas, como, por exemplo, a indicação de engenheiros do exército para tarefas de telecomunicações, há, por outro lado, a intenção de promover uma regeneração da máquina pública por meio da introdução de uma racionalidade política militar, havendo um centro de comando (em torno dos militares que comandaram missões de paz da ONU e formam o núcleo duro de ministros do Planalto ao lado do vice-presidente General Mourão), um serviço de inteligência (Abin) e a ocupação estratégica de espaços na máquina pública de modo a fazer valer o ponto de vista militar em detrimento dos demais grupos de influência.
Para compreender a racionalidade política que guia os militares é possível traçar uma história de suas transformações desde a Ditadura Militar. O texto que apresenta sua lógica inicial é a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Lá é apresentada a ideia de que a Guerra Fria é uma guerra total entre as duas superpotências, que se desdobra em vários níveis e que afeta todos os países inevitavelmente. No caso brasileiro, é o terceiro nível que interessava, caracterizado pela guerra não-declarada indireta, que assume a forma de um conflito no interior de um país entre partes de sua população. Trata-se de uma guerra insurrecional ou revolucionária. A guerra revolucionária não envolve necessariamente emprego da força armada, abrangendo toda iniciativa de oposição organizada com força suficiente para desafiar as políticas de Estado. Por isso, ela assume uma forma ideológica e psicológica, explorando os descontentamentos existentes em uma sociedade democrática de modo a conquistar as mentes do povo e incitar a rebelião. Para evitar a subversão, é preciso combater os assim considerados “inimigos internos”, que, por agirem de modo secreto, podem potencialmente ser toda a população, sendo necessário o amplo desenvolvimento de serviços de vigilância, informação e repressão, o que levou inclusive à militarização das forças policias estaduais em nome da segurança interna (Alves 1984). No limite, independentemente de ser ou não comunista, toda e qualquer oposição ao governo era vista como atividade subversiva e duramente reprimida. E isso justamente no momento em que o modelo de desenvolvimento dependente adotado aprofundava as desigualdades sociais (Alves 1984).
Após a transição negociada para a redemocratização, as forças armadas e a polícia jamais passaram por uma reforma estrutural profunda, apenas por uma infinidade de mudanças pontuais que buscavam, sem grande sucesso, eliminar gradualmente o entulho autoritário (Souza e Battibugli 2014). Com isso, manteve-se na cultural organizacional dessas instituições a concepção de que a população e os movimentos sociais, ao reivindicarem direitos, constituem-se como ameaças à ordem, não como cidadãos. O treinamento da polícia, ao invés de ser voltado para a ação comunitária, manteve-se ligado a ações militares de guerrilha e luta urbana, que representam a minoria das ocorrências, mas que definem uma lógica predominante de abordagem da população (Soares 2015). Por sua vez, as forças armadas foram cada vez mais convocadas a assumir funções de polícia e atuar em intervenções em morros e favelas para pacificar territórios ocupados por grupos criminosos (Souza 2015).
De um lado, a polícia segue militarizada, de outro, as forças armadas assumem função de polícia. Em ambos os casos, mantém-se a lógica militar da guerra ao inimigo interno (Souza 2015 ; Alves e Evanson 2013). A diferença é que o inimigo interno, após a redemocratização e principalmente a partir da década de 1990, é deslocado. Não podendo mais ser associado a uma posição político-partidária de esquerda, vista então como democraticamente legítima, a lógica militar elege como novo inimigo a guerra às drogas e ao crime organizado, notando-se ainda a criminalização dos movimentos sociais. Como as favelas, periferias e bairros pobres são considerados o reduto dessas formas de violência, promove-se uma gestão militarizada da pobreza, sem o pleno reconhecimento dos direitos civis e da cidadania dessa população vista como potencialmente perigosa. Na história brasileira, é possível argumentar que, na verdade, a polícia e o judiciário, na sua prática cotidiana, nunca reconheceram plenamente essas garantias. Se as teorias eugênicas do início do século XX foram derrotadas pelos liberais do ponto de vista legal, elas foram, no entanto, vitoriosas do ponto de vista institucional (Schwarcz 1993). Desse modo, ainda que desde a instauração da República no final do século XIX se tenha reconhecido direitos iguais a todos, a racionalidade eugênica definiu uma prática institucional que manteve a população não branca e pobre em uma condição de subcidadania que lhe colocava aquém dos direitos e lhe disponibilizava como alvo de violência e eliminação física não passíveis de punição. Mais recentemente, essa condição levou também a condenações sumárias e ao seu encarceramento em massa (Souza 2009 ; Wacquant 2003).
O episódio mais espetacular dessa nova lógica militar da guerra ao inimigo interno se deu em 2007 na operação policial e militar realizada no Complexo de favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, em nome da política de guerra às drogas do então governador Sérgio Cabral (Alves e Evanson 2013). Mas intervenções militares e ações de garantia da lei e da ordem (GLO) viriam a se repetir inúmeras vezes e em vários estados da federação, em especial associadas aos megaeventos da Copa do Mundo, Copa das Confederações e Olimpíadas. A mais recente intervenção militar foi convocada pelo ex-presidente Michel Temer em 2018. O então ministro da Justiça, Torquato Jardim, comentando a intervenção militar, explicita sem pudor como ela é vista da perspectiva da guerra, no caso, uma “guerra assimétrica” contra um inimigo interno invisível diluído na população das favelas cariocas, alvos da operação:
Na guerra assimétrica, você não tem território, qualquer um pode ser inimigo, não tem uniforme, não sabe qual é a arma. […] O Exército não tem sede, está esparramado em qualquer lugar, qualquer ponto do território nacional. E o pior, no caso do narcotráfico e crime organizado, nas fronteiras com outros países. […] Você está preparado contra tudo e contra todos, todo o tempo. Você não sabe nem quais são os recursos necessários […]. Quantos eu preciso para a [favela da] Rocinha? Não sei. Como você vai prevenir aquela multidão entrando e saindo de todas as 700 favelas? Tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola. É muito complicado.
(«’Não há guerra que não seja letal’, diz Torquato Jardim ao Correio» 2018)
No caso das forças armadas, especialmente do exército, a expertise para esse tipo de intervenção foi parcialmente obtida na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) e secundariamente na Missão das Nações Unidas de Estabilização da República Democrática do Congo (MONUSCO). O Haiti ganha destaque porque foram os militares brasileiros que lideraram a “pacificação” de 2004 a 2017 e que enviaram o maior número de tropas. No Congo, o general Santos Cruz chefiou a missão entre 2013 a 2015. Dentre os generais que chefiaram a missão de paz no Haiti, três constituem hoje o núcleo duro de ministros que rodeiam Bolsonaro no Palácio do Planalto: General Augusto Heleno, General Santos Cruz e General Floriano Peixoto. O ministro da defesa, General Fernando Azevedo e Silva, serviu no Haiti sob a liderança do General Heleno, o atual Comandante do Exército, General Edson Leal Pujol, chefiou em outro momento a missão e o ministro da infraestrutura, o militar e engenheiro civil Tarcísio Gomes de Freitas, atuou como chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia do Brasil.
A Missão da ONU no Haiti nos dá pistas, assim, para compreender tanto a estratégia militar que foi posteriormente transposta para as sucessivas intervenções militares na realidade brasileira quanto a racionalidade política que perpassa o núcleo militar do governo Bolsonaro. Examinando a documentação a respeito das missões de paz da ONU, nota-se que seus métodos e modelos foram institucionalizados ad hoc e de maneira pragmática a partir das missões da década de 1990. O surgimento no pós-Guerra Fria do conceito liberal de Segurança Humana, centrada no indivíduo e considerando a forma como as pessoas vivem em sociedade, o quão livremente fazem suas escolhas, se têm acesso a oportunidades econômicas e sociais e se vivem em conflito ou em paz, fez com que as operações de paz tivessem seu escopo ampliado, visando a instituição da democracia, da regra de direitos e do livre mercado. As tarefas inéditas atribuídas aos peacekeepers eram as seguintes:
acantonamento e desmobilização de forças; recolhimento e destruição de armamentos; reintegração de ex-combatentes à vida civil; concepção e execução de programas de remoção de minas; auxílio para retorno de refugiados e deslocados internos; fornecimento de ajuda humanitária; treinamento de novas forças policiais; supervisão do respeito aos direitos humanos; apoio à implementação de reformas constitucionais, judiciais e eleitorais e auxílio à retomada das atividades econômicas e à reconstrução nacional, incluindo a reparação da infraestrutura do país anfitrião.
(Fontoura 1999)
Nessa relação mais próxima com as populações locais, abriu-se espaço para novos mecanismos para lidar com crises humanitárias decorrentes de embates domésticos, com diluição de limites no que se refere ao emprego da força. De um lado, era preciso buscar os princípios de imparcialidade da ação, consentimento das partes envolvidas no conflito e uso da força apenas em situações de legítima defesa; de outro, havia a pressão para combater ativamente as violações de direitos humanos, adotando postura parcial e coercitiva. Evanescia-se, assim, a distinção entre operações de peacekeeping e as operações claramente coercitivas, podendo-se ultrapassar a noção tradicional de legítima defesa e converter-se por vezes em operações de peace enforcement.
No documento “An agenda for peace” do Conselho de Segurança, de 1992, o papel da ONU era definido progressivamente como devendo:
[…] identificar, o mais cedo possível, situações que podem produzir conflitos e tentar através da diplomacia remover as fontes de perigo antes que estas resultem em violência; quando o conflito emergir, fazer uso de ‘peacemaking’, destinado a resolver as questões que levaram ao conflito; através de operações de peacekeeping, trabalhar para preservar a paz, embora frágil, onde a luta tenha sido detida e assistir na implementação de acordos feitos pelos ‘peacemakers’; permanecer em prontidão para auxiliar em operações de Peace-building nos mais diferentes contextos: reconstruindo as instituições e a infraestrutura das nações atingidas pela guerra civil e outras lutas; construir laços de benefícios mútuos pacíficos entre as nações anteriormente em guerra; e, num sentido mais amplo, abordar as causas mais profundas do conflito: disparidade econômica, injustiça social e opressão política.
(Gomes 2014)
Diversas eram, portanto, as tarefas militares nas missões de paz e parte delas foi transposta para a prática do grupo militar da reserva no governo. Primeira tarefa, era preciso prevenir diplomaticamente os conflitos. Essa lógica reapareceu no período recente quando o Chefe do Estado Maior do Exército, General Villas-Boas, que posteriormente também virou integrante do governo, fez pressão institucional e ameaça velada ao STF contra a libertação do ex-presidente Lula e contra a autorização para concorrer às eleições. O receio era o crescimento da polarização política em direção ao conflito aberto, tendo como horizonte o fantasma da “venezuelização” do país. A posição dos militares, no entanto, longe de ser imparcial para mediar o conflito, foi a de tomar parte pela radicalização da direita no país, buscando pacificar seus próprios quadros internos. De fato, os militares, que sempre tiverem resistência às esquerdas, tiveram uma piora acentuada de sua relação com o PT quando Dilma Rousseff propôs a Comissão Nacional da Verdade para averiguar os crimes cometidos por militares durante a Ditadura Militar. Posteriormente, a relação voltou a se degradar quando Dilma procurou limitar o poder dos generais (depois recuando em sua decisão) e quando o PT sugeriu que deveria ter influenciado no currículo de formação das Forças Armadas para torná-las mais democráticas e progressistas. Temendo que os antigos oficiais, muitos deles parentes dos atuais militares, fossem expostos publicamente manchando a instituição, e, principalmente, temendo interferências externas, reformas estruturais e perda de autonomia, os militares tornaram-se profundamente antipetistas. Abandonaram assim uma postura imparcial de mediação do conflito para uma postura parcial de tutela da democracia. Já em novo episódio após o início da presidência de Bolsonaro, essa função de “prevenção diplomática dos conflitos” se estendeu para grupos internos ao próprio governo, como os olavistas-antiglobalistas. O radicalismo de direita e de costumes desses grupos, que, por meio das redes sociais e de medidas oficiais, buscam promover uma mobilização permanente de seus apoiadores e uma caça às bruxas contra políticos e militantes de esquerda, ambientalistas, professores universitários, artistas, movimentos identitários e movimentos sociais, acabou inadvertidamente jogando os militares para uma posição discursiva mais ao centro. Essa posição é claramente notada na retórica moderada devidamente treinada do vice-presidente General Mourão. A atuação dos militares nesses episódios passou a ser a de tutelar as decisões e discursos dos ministros ligados a esses grupos (principalmente no ministério das relações exteriores e no ministério da educação) e de buscar controlar a comunicação oficial do próprio presidente da República.
Nem sempre essa tutela foi bem sucedida e, após o primeiro semestre de governo, o grupo neoconservador, por meio de suas conexões internacionais e do assassinato de reputações nas redes sociais, foi capaz de impor derrotas à ala militar. Os olavistas-globalistas obtiveram a recomposição do núcleo de ministros mais próximos do presidente, com a demissão do ministro militar Santos Cruz e a transferência do ministro Floriano Peixoto, e retomaram o controle sobre o ministério da educação e sobre a comunicação do governo. Houve igualmente o aumento do protagonismo dos filhos do presidente, Eduardo (principal mediador das conexões neoconservadoras internacionais) e Carlos Bolsonaro (responsável pela comunicação pessoal do presidente).
A segunda função, a de pacificação de conflitos já existentes, voltou-se recentemente para as operações de intervenção militar e de garantia da lei e da ordem, e se destinaram a combater o tráfico de drogas e o crime organizado em favelas e bairros pobres. É aqui, evidentemente, que a ação coercitiva encontrou lugar e buscou se desenvolver segundo métodos similares aos empregados no Haiti. Conforme matéria da agência Reuters (Stargardter 2018), em 2005, o General Augusto Heleno, hoje o ministro militar mais influente dentro do governo Bolsonaro, comandou sua tropa de peacekeepers na batalha de “Iron Fist”, momento decisivo na restauração da ordem no país. Foi realizado, então, segundo grupos de direitos humanos, um verdadeiro massacre no bairro pobre de Cite Soleil em Port-au-Prince. De modo a enfrentar as gangues e milícias armadas e eliminar sua liderança, foram gastas mais de 22.000 balas, matando dezenas de espectadores civis, entre eles mulheres e crianças. Essa fase das operações de “pacificação” voltou recentemente a ser proposta como modelo de segurança pública pelo governador carioca, Wilson Witzel, pelo General Heleno e pelo próprio presidente Bolsonaro (Stargardter 2018). Os militares, no entanto, se ressentiam da responsabilização criminal de seus soldados no caso das mortes decorrentes das operações e insistiam em obter um excludente de ilicitude para agir livremente segundo sua lógica militar da guerra. Para além das omissões corriqueiras do judiciário, queriam autorização legal para suas operações letais. É aqui que entra o projeto de lei anticrime lançado pelo ministro da justiça Sérgio Moro. Nele, passa a ser considerada legítima defesa, com redução ou até eliminação da pena, quando o excesso cometido pelo agente policial ou de segurança pública “decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Como essas circunstâncias subjetivas não são aferíveis, trata-se simplesmente de licença legal para a polícia e os militares matarem em operações de pacificação e em outras circunstâncias. Além dos problemas inerentes a essa forma ilimitada de atuação, que coloca em risco e não reconhece os direitos das populações pobres e não brancas, há ainda o risco permanente de os conflitos envolvendo movimentos sociais e manifestações políticas passarem a ser alvo dessa forma coercitiva de atuação, com brecha para a repressão e eliminação física de qualquer forma mais organizada de oposição política de massa.
A terceira função, a de peacebuilding, determina aos militares a reconstrução institucional e da infraestrutura, buscando lidar com os motivos profundos do conflito. A tarefa é dar “suporte à transformação de estruturas e capabilities nacionais deficientes e [fortalecer] novas instituições democráticas” (Boutros-Ghali 1992, sec. 59). No presente recente, pode-se notar diferentes ações nesse sentido. No ministério de infraestrutura, busca-se destravar as obras paradas e fazer concessões para retomar os investimentos na infraestrutura do país. Do ponto de vista institucional, a última intervenção militar no Rio de Janeiro, mais do que operações espetaculares, preferiu investir na retomada da capacidade das polícias estaduais, recompondo seu orçamento e melhorando seu equipamento. A reconstrução das polícias segue claramente o modelo da atuação no Haiti. Mas é no âmbito da reconstrução das instituições político-democráticas que a ação militar está se fazendo mais atuante no início desse governo. É em nome do fim da corrupção e da velha política característica do presidencialismo de coalizão que os militares estão ocupando os postos de primeiro, segundo e terceiro escalão, com previsão para expansão. A presença dos militares em posições estratégicas dos ministérios, autarquias, empresas estatais e até mesmo no Superior Tribunal Federal seria uma forma de ocupar cargos que antes pertenciam a políticos fisiológicos e que davam acesso, de maneira legal e ilegal, a recursos que posteriormente seriam utilizados em financiamento de campanha eleitoral e para enriquecimento ilícito. A presença nesses postos permitiria também obter informações estratégicas para identificar e desmontar esquemas de corrupção. De maneira mais ampla, a simples presença dos militares poderia em tese inibir e precaver as práticas ilícitas, retomando a idoneidade no Estado. Além do critério digamos “ético”, os quadros militares teriam também capacidade técnica para suprir os postos de um governo cujo partido vencedor era uma legenda de aluguel sem qualquer organicidade e sem quadros preparados para a função. De ponto de vista da lógica militar, portanto, a reforma do Estado viria pela militarização da burocracia pública.
Politicamente, portanto, os militares passam a tutelar a democracia e a militarizar a administração pública. Diante da questão se o sistema de pesos e contrapesos das instituições democráticas seriam capazes de colocar limites a Bolsonaro e aos bolsonaristas no governo, o que surge é uma solução inesperada em um primeiro momento, sendo a base militar do próprio governo que passa a desempenhar esse papel moderador. Os militares se situam assim em uma tripla coordenada no espectro político: à esquerda, impedem a candidatura da sua maior liderança eleitoral e observam com apreensão os movimentos sociais de modo a evitar o que consideram o risco de uma “venezuelização” do país; à direita, buscam tutelar, muitas vezes sem sucesso, a ala mais radical dos olavistas-antiglobalistas, incluindo o próprio presidente e seus filhos, de modo a evitar perseguição política a quadros da esquerda; e, ao centro, ocupam o espaço dos políticos fisiológicos que historicamente trocavam cargos por apoio parlamentar no congresso. Há ainda uma quarta frente de batalha, desta vez com o crime organizado e com o tráfico de drogas, estendendo-se em uma gestão militarizada da pobreza. E, por fim, ao reintroduzir a rígida hierarquia tipicamente militar no interior do governo, com os generais buscando tutelar o próprio capitão-presidente, eles dão início ao fim da revolta moralizadora das camadas médias, que visam moralizar de cima para baixo os pobres e acabar, de baixo para cima, com a corrupção dos poderosos, visão expressa na Lava-Jato, nas manifestações de classe média pró-impeachment, na ascensão parlamentar do Centrão, na nomeação de um diplomata da baixa hierarquia do Itamaraty para chanceler, na ascensão dos intelectuais de internet sobre os acadêmicos e na eleição de um oficial de média patente para a presidência.
O objetivo dos militares da reserva, consequentemente, é uma ampla operação de “pacificação” da sociedade brasileira em um momento de crescente polarização política e aumento da violência, procurando restaurar a ordem em novas bases conservadoras e no restabelecimento das hierarquias, tendo como métodos a tutela da democracia, a militarização da administração pública e a gestão militarizada da pobreza.
A interação entre as lógicas políticas heterogêneas do neoliberalismo e da militarização
É preciso entender como as racionalidades políticas heterogêneas centrais ao governo interagem de maneira dinâmica entre si, promovendo, por vezes, efeitos de reforço recíproco, mas também de bloqueio em alguns pontos ou se ignorando em outros. Em um primeiro momento, contrariando a visão de que haveria uma tensão crescente entre militares corporativistas defensores de um desenvolvimentismo estatista e economistas neoliberais que buscam enxugar o Estado, o que houve foi uma aliança. Os generais se mostram favoráveis às reformas neoliberalizantes de Paulo Guedes e dizem ser mais próximos do modelo liberal do ex-presidente militar Castelo Branco do que do desenvolvimentista de Geisel. No entanto, é preciso observar como esses dois projetos diferentes de Estado se casam entre si. Parecem ser dois os pontos de reforço recíproco.
O primeiro e mais decisivo diz respeito às tentativas de combinar desmonte do Estado, fim dos concursos públicos e ataque ao funcionalismo público com a militarização da administração pública. O primeiro ensaio foi uma lei inserida na Proposta de Emenda Constitucional da Reforma da Previdência (PEC 06/2019), que previa a possibilidade dos entes federativos contratarem temporariamente militares da reserva sem concurso público para a prestação de serviços civis:
Art. 42. […] § 3º Lei do respectivo ente federativo poderá: I - estabelecer regras para o militar transferido para a reserva exercer atividades civis em qualquer órgão do respectivo ente federativo por meio de adicional […]; II - estabelecer requisitos para o ingresso de militares temporários, observado, em relação ao tempo de serviço militar por eles prestado, o disposto no § 9º-A do art. 201.
(«Proposta de Emenda à Constituição n° 6, de 2019 - Reforma da Previdência» 2019)
A medida atenderia de um lado os interesses corporativistas de militares da reserva que buscam complementos salariais às suas aposentadorias, criando inclusive incentivos remunerados indiretos para os militares deixarem seus postos na ativa em um momento de reforma da previdência. E, de outro lado, a redução neoliberal do quadro de funcionários concursados não levaria ao colapso imediato do funcionamento da máquina pública. Essa lei acabou derrubada quando a PEC foi apreciada na Câmara dos Deputados.
Outra medida no mesmo sentido foi a criação das escolas cívico-militares, em que militares assumiriam a gestão e a disciplina das escolas, mas não diretamente as atividades pedagógicas. A verba de 54 milhões de reais por ano aferida ao projeto se destina majoritariamente a pagar os salários dos oficiais da reserva que irão trabalhar nas instituições. O contrato na modalidade Prestadores de Tarefa por Tempo Certo baseia-se em 30% da remuneração que o militar recebe na reserva, incluindo ainda direitos relativos a 13°, férias, transporte e alimentação. O pagamento poderá ser feito diretamente pelo Ministério da Defesa, quando forem egressos das Forças Armadas, ou então, no caso da ausência destes, os recursos serão repassados às cidades e aos estados, que disponibilizarão militares das corporações estaduais. Promove-se assim uma militarização das escolas, gerando renda extra para os reservistas e militares, e, ao mesmo tempo, a doutrinação conservadora, a perseguição ideológica aos professores e a criminalização dos alunos das escolas públicas com baixo Ideb em zonas de vulnerabilidade social.
O segundo ponto de convergência diz respeito à capacidade da gestão militarizada da pobreza de conter coercitivamente os distúrbios sociais ocasionados pelas reformas neoliberais, ao passo que os militares, especialmente os oficiais de alta patente, são, se não inteiramente poupados, amplamente compensados pelas reformas em curso, tendo sido o próprio Ministério da Defesa a propor os termos da reforma da previdência militar a ser votada pelo Congresso. No caso de reação política dos movimentos sociais, revoltas populares e de manifestações de massa, os militares podem, em nome da pacificação e do restabelecimento da ordem, empregar métodos violentos e o excesso de força que, se aprovados, serão previstos em lei. Podem também fazer concessões crescentes à ala mais extremista do bolsonarismo e contar com suas estratégias de comunicação, visando estigmatizar a oposição como novos inimigos internos a serem combatidos. Como exemplo, na primeira grande manifestação contra o governo, desencadeada pelo contingenciamento de verbas das universidades federais, a resposta foi baixar um decreto prevendo a investigação pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), comandada por um ministro militar, da vida pregressa de candidatos a reitores e diretores das universidades federais, sugerindo de maneira intimidadora a perseguição ideológica a postulantes de esquerda.
Mas é preciso notar que há também pontos de bloqueio recíproco entre as duas lógicas políticas. Em primeiro lugar, os militares tendem a resistir à reforma da previdência, trabalhista e às privatizações das empresas que estão sob o controle de seus ministérios ou que enxergam como militarmente estratégicas para a segurança nacional. Pontos de tensão já ocorreram entre economistas e militares em três ocasiões. Na inclusão e definição de critérios da reforma da previdência dos militares; na venda da empresa nacional de aviação Embraer para a Boeing; e na definição do ministério da infraestrutura, com a desistência de um postulante militar de viés desenvolvimentista que participou ativamente da produção do plano de governo durante a campanha, de modo a evitar confronto com o ministro Paulo Guedes.
Outro ponto de bloqueio é a dificuldade de aprovação das reformas neoliberais pelo congresso em função da ocupação pelos militares da reserva dos cargos de alto escalão do governo. Antes, esses cargos eram concedidos aos partidos em troca de apoio parlamentar. Com a redução dos cargos disponíveis, o velho método de angariar apoio nas votações legislativas fica reduzido ou mesmo inviabilizado. Cria-se um impasse e a necessidade de outras formas de obter apoio dos congressistas. Esse impasse cria um risco real para a democracia que, mesmo desgastada com o impeachment de Dilma Roussef e com a impugnação da candidatura de Lula, segue sendo reconhecida de maneira formal no país. As soluções ensaiadas apontam para duas estratégias. A primeira seria por meio de chantagem, ameaçando os parlamentares com investigações criminais. Nesse aspecto, o fato do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ter migrado para o ministério da justiça permite o livre acesso de seus agentes às movimentações financeiras de políticos e seus familiares, sendo os dados posteriormente encaminhados ao ministério público e à polícia federal, que passaria a agir como uma polícia política. Não por acaso, congressistas se mobilizaram para que o órgão retornasse ao Ministério da Economia. A segunda solução surgiu como resposta ao apoio crescente dos parlamentares à transição para um regime parlamentarista ou semipresidencialista, transferindo poderes do executivo para o Congresso. A estratégia do governo foi então ainda mais radical, apelando para a incitação popular e sugerindo nas entre linhas uma ameaça de fechamento do Congresso e do Judiciário.
A composição central do governo Bolsonaro acaba associando, assim, as reformas econômicas neoliberais com a militarização da administração pública e a gestão militarizada da sociedade. Esse casamento, que ainda se apoia no discurso neoconservador para construir e atualizar o inimigo interno, se desenvolve em detrimento da democracia, constituindo a versão brasileira do neoliberalismo autoritário.
Parties annexes
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