Résumés
Mots-clés :
- Ruy Fausto,
- Politique,
- Université,
- Sorbonne
Keywords:
- Ruy Fausto,
- Politics,
- University,
- Sorbonne
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O anúncio do súbito falecimento de Ruy Fausto, ocorrido em Boulogne-Billancourt no dia 1o de maio como consequência de um infarto, foi para nós, assim como para todos os seus numerosos amigos, um choque de uma tristeza infinita. Ruy Fausto foi presença constante em nosso Grupo de Estudo sobre o Neoliberalismo e Alternativas (GENA) e um grande amigo com o qual vivemos tantas belas tardes e alegres momentos tanto em Paris quanto em São Paulo, na companhia de todas aquelas e todos aqueles que o amavam por aquilo que ele havia feito e escrito em sua vida e por sua presença sempre calorosa, agradável e generosa. Era um homem de sorriso e de cólera, de combate e de trabalho, de paixão e de conversação. Aquelas e aqueles que tiveram a chance de compartilhar com ele esses momentos de ricas trocas de análise sutis, de anedotas vividas e de novas percepções se lembrarão da fina ironia com a qual ele sabia combinar os recordações de uma vida pessoal abalada pelas tragédias políticas da Europa e da América Latina, a história da filosofia no Brasil, os avatares do marxismo mundial, um olhar crítico sobre a esquerda brasileira e o relato de seus compromissos mais recentes para renovar a esquerda francesa. Ruy Fausto era múltiplo : brasileiro, francês, filósofo, poeta, músico, militante, jornalista e professor. E todos esses aspectos davam vida às suas palavras, notadamente aquelas proferidas na cafeteria da BNF, seu quartel general em Paris, onde nos encontrávamos com frequência, esse lugar onde ele sempre encontrou com a maior bondade os jovens doutorandos ou pós-doutorandos vindos estudar em Paris. Ele perseguia tanto em Paris como em São Paulo essa viva ligação entre o pensamento francês e o pensamento brasileiro, essa ligação que o havia verdadeiramente constituído intelectualmente desde a juventude, especialmente graças a alguns de seus mestres, que ele sempre evocou com grande reconhecimento, como Gérard Lebrun, quando ministrou aulas na Universidade de São Paulo, a instituição a que, apesar de seu exílio, Ruy permaneceu profundamente ligado. A França, como para outros jovens intelectuais latino-americanos de sua geração, foi a terra de seu exílio. Ela lhe permitiu construir uma carreira no departamento de filosofia na Universidade de Paris VIII, mas não sem singulares dificuldades na seara das intrigas profissionais, das quais ele guardava uma lembrança vívida.
Filósofo engajado, homem de grande cultura, intelectual cosmopolita, Ruy Fausto não concebia o exercício do pensamento confinado entre os muros da universidade. No mais profundo de sua obsessão exegética, Ruy Fausto apenas praticava a filosofia atrelada ao real das sociedades, apenas aquela filosofia que estivesse ligada à vida dos homens. Ele lia os economistas, os sociólogos, os romancistas e os poetas. Às vezes ele confessava seu arrependimento de não ter tempo suficiente para se consagrar à leitura dos escritores. Quantos livros ele ainda tinha para ler ! A Biblioteca Nacional não era para ele um abrigo longe da fúria e do barulho, era um posto de observação do mundo, um arsenal de armas políticas e, também, um lugar onde continuar a aprender. A sala K (filosofia) não será mais a mesma sem ele.
E seus trabalhos de alta erudição sobre Marx, que às vezes ele lamentava que não fossem mais lidos, mas que permanecem textos incontornáveis, não contradizem esse engajamento de uma vida. Ruy Fausto é o autor, dentre outras obras, de um livro que marca época : Marx : Lógica e Política. Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética, publicado pela editora Publisud em 1986. É preciso inicialmente prestar atenção à data de publicação : estamos no meio dos anos 1980, esses “anos de inverno”, para usar a expressão de Guattari, nos quais era de bom tom, entre um grande número de intelectuais, tratar Marx como um “cachorro morto”, a expressão aplicada a Spinoza no tempo de Lessing ou a Hegel no tempo de Marx, como recorda justamente Jean-Toussaint Desanti no prefácio que escreveu para o livro de Ruy Fausto. Como observa Desanti em seu prefácio : “a moda marxista dos anos sessenta é eficazmente sucedida pela moda antimarxista dos anos oitenta.”. Além disso, é preciso recordar que o antimarxismo fazia sucesso junto aos verborrágicos e aos ensaístas que buscavam notoriedade, em particular entre os promotores da “marca” denominada “nova filosofia”. A abordagem de Ruy Fausto é seguramente contracorrente da moda intelectual prevalente à época. Entretanto não se trata para ele de restaurar a integridade da doutrina marxista e de colocar-se como defensor atento de uma ortodoxia qualquer ameaçada. Reconhecendo a crise do marxismo, ele liga-a à crise da própria dialética. Antes de tudo, ele pretende restituir à dialética seu sentido estrito e, para isso, praticá-la em sua leitura minuciosa dos textos de Marx, principalmente o Grundisse e O Capital, em uma época em que muitos se contentavam em ler os Prefácios para emitir uma opinião de especialista. Em nossa visão, o mais importante, contudo, é aquilo que está no título logo após o nome de Marx : “Lógica e Política”. Dois extremos reunidos por um “e”. De um lado a lógica da crítica da economia política. Do outro, a prática política. Ainda hoje nos cabe pensar sobre a tensão entre esses dois extremos. Hoje mais do que nunca. Essa é a grande lição que ele nos deixou.
Ruy Fausto possuía uma experiência política a transmitir, não apenas a sua, mas também aquela dos revolucionários do século XIX. A política é um assunto sério, de vida e de morte. Esse grande ser vivo sabia que a morte política das massas era uma ameaça sempre presente na Europa e na América Latina. Criança durante a Segunda Guerra Mundial, jovem rapaz quando a ditadura se impõe no Brasil, exilado no Chile ele escapa por pouco dos militares no momento do golpe de Estado de Pinochet.
O trotskysmo de sua juventude vacina-o contra todo compromisso com o totalitarismo stalinista e seus duplos. Crítico intransigente das formas oligárquicas, dogmáticas e populistas da esquerda, ele guardou até o fim a esperança de que a esquerda soubesse se curar de suas falhas e se reinventar, tanto no Brasil quanto na França. Leitor de Arendt, de Lefort e de Castoriadis, ele era daqueles para quem a verdadeira tradição revolucionária era levar a democracia até o fim. Internacionalista em ato, ele sabia que nada de bom poderia vir do nacionalismo. E, quando o tempo catastrófico do bolsonarismo chegou, ele dá mais uma lição de coragem ao se lançar na luta pública contra o novo fascismo que crescia no país.
Apesar de suas múltiplas atividades, especialmente a colaboração com a Revista Fevereiro e, em seguida, com a Revista Rosa, para qual ele dedicou muito esforço nesses últimos meses para seu lançamento, paralelamente à difusão de seus últimos livros sobre a esquerda, a revolução e o totalitarismo, ele participou apaixonadamente na criação e na discussão do GENA. Nós tinhamos muito em comum, eramos quase da mesma geração. Ele ainda tinha vários projetos a desenvolver com o grupo francês. Ele escrevia a um de nós um e-mail no fim do mês de março :“eu espero que nós possamos fazer um trabalho coordenado França/Brasil. Sob múltiplas formas : revista, seminários, videos, podcasts etc.”. Todo o Ruy está ali. Com 85 anos, o futuro ainda era de ação, de coordenação e de ligação entre a França e o Brasil.
Nós tentamos dizer a todos seus amigo(a)s e colegas brasileiros que cruelmente sofrem hoje com essa perda que os laços intelectuais e amicais tão estreitos que nós conseguimos estabelecer com a ajuda de Ruy não irão se quebrar. Essa é a nossa maneira de perpetuar, para além da morte, sua magnífica lição de vida.