Abstracts
Resumo
Depois de dois meses de transição após a estreita vitória eleitoral de Lula no Brasil em 30 de Outubro de 2022, a invasão da Esplanada de Brasília lembrou ao novo governo que o jogo ainda não estava ganho. O ataque à sede das instituições federais esteve muito perto de ser bem sucedido. Esse cenário foi abortado assim que a polícia se submeteu ao comando. O fiasco das autoridades de Brasília levou à gestão dircta da segurança pelo governo e à demissão de centenas de funcionários públicos. A nossa análise tenta decifrar o que esse evento nos diz sobre as divisões de um país que duvida profundamente das suas instituições.
Palavras chaves:
- Brasil,
- Brasília,
- Política,
- Eleições,
- Instituições,
- Propaganda,
- Redes sociais
Résumé
Au terme de deux mois de transition après la courte victoire électorale de Lula au Brésil le 30 octobre 2022, le sac de l’Esplanade de Brasília a rappelé au nouveau gouvernement qu’il n’avait pas partie gagnée. Il s’en est fallu de peu que ne réussisse l’attaque du siège des institutions fédérales. Ce scénario a avorté dès que la police s’est soumise aux nouvelles autorités fédérales pour reconquérir le terrain. Le fiasco des autorités de Brasília débouche sur la gestion directe de la sécurité par le gouvernement et sur la mise à pied de centaines de fonctionnaires. Notre analyse à chaud tente de décrypter ce que cet événement nous dit des divisions d’un pays qui doute profondément de ses institutions.
Mots-clés :
- Brasília,
- Politique,
- Élections,
- Institutions,
- Propagande,
- Réseaux sociaux
Abstract
After two months of transition following Lula's narrow electoral victory in Brazil on October 30, 2022, the sack of the Esplanade in Brasília reminded the new government that it had not won yet. The attack on the headquarters of the federal institutions came very close to succeeding. That scenario was aborted as soon as the police submitted to the new government. The fiasco of the Brasília officials leads to the direct management of security by the government and the dismissal of hundreds of civil servants. Our analysis attempts to decipher what this event tells us about the divisions in a country that deeply doubts its institutions.
Keywords:
- Brazil,
- Brasília,
- Politics,
- Elections,
- Institutions,
- Propaganda,
- Social networks
Article body
A relação que os cidadãos mantêm hoje com a política é mediatizada por práticas estéticas e tecnológicas, que modificam a qualidade de antigas práticas e rituais que definiam até então a experiência da política.
(Tiburi 2021)
Para um fotógrafo, a perda de seu material se compara à perda de um instrumento para um músico e a de um navio para um marinheiro – uma mutilação. Essas ferramentas são expansões do corpo tornado especialista, virtuoso e competente, como se costuma dizer. Um drama para Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial de Lula, que retornou com urgência a Brasília, na noite de 8 de janeiro, após ter passado o domingo com o presidente em São Paulo, onde havia ocorrido um deslizamento de terra. Deixado alguns dias antes em seu novo escritório no Planalto, seu equipamento foi saqueado e roubado. Ousemos uma metáfora: para aqueles que alcançaram as maiores honrarias, o governo torna-se um corpo aumentado de outro tipo. É por isso que falamos de violação das instituições? É por isso que Jair Bolsonaro se recusou a transmitir o poder do qual gozou sem restrições durante quatro anos? O saque da Esplanada permanecerá sendo um episódio vergonhoso da história política brasileira, em que um presidente, incapaz de se reeleger, fez de tudo, durante dois meses, para instigar seus apoiadores mais resolutos, até que os mais inflamados entre eles, seguindo ordens, foram desfigurar os símbolos da república moderna, tão desejada por grandes espíritos do século passado, com a intenção desavergonhada de arrancar do Brasil esse corpo (político) aumentando com que o país se dotou. Inúmeras hierarquias civis e militares acompanharam o desenvolvimento desse putsch, embora seja difícil entender de que forma ele teria sido bem-sucedido. Adeus, Bolsonaro!
Do mito ao milagre
A mitologia do poder conta com o sobrenatural. Bolsonaro foi envolto na aura da facada recebida durante a campanha de 2018. A pouco de volta ao comando do país, Lula está envolto no mistério daquele que soube reprimir, desde o início, um golpe de Estado medíocre. Isso acrescenta mais um capítulo à epopeia do Brasil mágico, louvado pelos guias turísticos. A Esplanada torna-se um lugar de memória coletiva mais famoso que nunca e os ambulantes poderão vender camisetas de manifestantes, como em Berlim se vendiam fragmentos do Muro… Como bom maquiavélico, Lula demonstra estar acima das circunstâncias: nada de excomunhão em massa, nada de caça às bruxas. Pode-se contar com a obsequiosidade dos traidores, que se sentem observados. No cotidiano, é certo que ele confiará apenas nos mais próximos – essa foi a mensagem enviada desde a composição do governo – e convocará o Congresso a votar de acordo com seus pontos de vista[1].
Do desafio à indiferença
“Alguma coisa vai acontecer”. Essa frase me chocou em 2017, quando ela assinalava a incredulidade dos intelectuais frente a Bolsonaro e sua incapacidade de pensar o futuro do país. Desconectados? Em todo caso, o fato de se refugiarem em uma esperança mística me parecia inconsequente. Especialmente, porque ela era compartilhada pelas principais mídias e editorialistas. Essa alguma coisa foi então Bolsonaro, impossível de ser batido diante do linchamento midiático da esquerda e da incapacidade sociológica das elites de fazer emergir um representante de seus interesses, capaz de arregimentar uma maioria popular sob seu nome. O prestígio intelectual já não vendia mais e Haddad foi duramente vencido por um obscuro deputado populista de extrema direita. E então, todos os dias, alguma coisa acontecia: durante quatro anos, as mídias de todos os espectros não encontraram nada melhor a fazer que comentar em grande escala os gestos do “Mito, inclusive aqueles de sua vida familiar intensa, contribuindo – cinicamente ou por pura ingenuidade – para o enraizamento de sua atitude política, em todo o país. Mas nós vivemos do espetáculo ao vivo – mais conhecido como live. Boas famílias reconhecem maus partidos e chegaram, portanto, à seguinte opinião: “esse senhor não tem educação – é um sem noção”. No Brasil, não há como escapar de uma avaliação dessas – a menos que seja interpretada apenas como uma provocação aos tolos. E isso quase funcionou por mais quatro anos.
Desconstruir sua política e silenciar sua agitação estéril era o melhor. Entretanto, apenas organizações externas aos jogos de poder o tentaram. A título de exemplo, a APIB, assim como organizações de favelas do Rio, optaram por articular com clareza lutas específicas e questões mais amplas – o respeito às culturas e ao direito constitucional como fator imprescindível à criação (ainda no início) da reivindicação por uma justiça transclassista[2]. Trata-se de considerar como fator motriz a irredutível diversidade de situações, no sentido de elaborar abordagens micropolíticas capazes de assumir o princípio da diferença. Em outros termos, trata-se de uma abordagem qualitativa, baseada na necessidade dinâmica da compensação e não em uma simples igualdade quantitativa. Decorrente das políticas de cotas e da demarcação de terras, essa orientação poderia desencadear um vasto programa de descentralização, justificado pela análise fina de possíveis transformações, em diversos contextos do país. Em alguns casos, trata-se de dar mais apoio à formação profissional, para abordar a transição energética ou sair da monocultura. Outras configurações privilegiariam uma abordagem territorial, preservando biótipos de regiões inteiras, ao mesmo tempo que asseguram um desenvolvimento sustentável, ao exigir o controle da especulação financeira e imobiliária; ou mesmo, pautar uma drástica diminuição dos veículos individuais, em contexto urbano, através de investimentos massivos nos transportes coletivos.
Acordos suprapartidários, mesmo que parciais, seriam a condição para estabelecer uma fiscalidade nova e realmente diferencial, ao prever o aumento de uma taxa fiscal marginal sobre capitais fixos ou especulativos. Os principais beneficiários dos investimentos públicos são sempre os mais ricos: seus privilégios são garantidos pela confidencialidade dos negócios e pelo fato de que parte do orçamento público, em infraestruturas privadas de transporte, de saúde e de educação, aliviam consideravelmente seus gastos nesses serviços – o mesmo ocorre com as forças de segurança, que protegem os mais abastados de forma absoluta, mas defendem apenas relativamente os mais pobres. Tal reflexão permitiria pensar a fiscalidade em função do benefício diferencial às populações, ao incluir dimensões imateriais pouco levadas em consideração, até o momento, por abordagens baseadas em simples transferências financeiras centralizadas. Isso quer dizer que, desde o início do jogo, o Brasil poderia recomeçar a sonhar. Utópico? Não necessariamente. Em outro contexto, sem mencionar o combate às desigualdades, Patrick Artus se pergunta se a melhor política para financiar a transição energética, sem alimentar a inflação, não seria a de “controlar a inflação por intermédio de uma política fiscal flexível. Alguns impostos seriam aumentados, no caso de inflação, ou reduzidos, no caso de deflação, entre eles o imposto sobre a renda das famílias e a taxação do lucro das empresas” (Artus 2023).
Concretamente, vendo o país ser ridicularizado, algumas cabeças pensantes se exilarem, os investimentos secarem e a impossibilidade de controlar o “capitão”, juízes começaram progressivamente a agir, particularmente o Supremo Tribunal Federal, cujos membros atuam como censores das ações do governo e esboçam, de acordo com os ventos que sopram, compromissos entre os poderes tentados a invadir suas prerrogativas constitucionais. De forma sucessiva, o STF autorizou a prisão de Lula, anulou os processos que o acusavam e acompanhou a gestão bolsonarista, antes de velar pelo bom decorrer das eleições. Com as operações contra o PT progressivamente encerradas e os processos contra Lula invalidados, a guerra aberta entre Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal tornou-se um ponto de tensão. Bolsonaro ainda conseguia nomear semanalmente dezenas de funcionários de sua escolha, mas precisava se articular, se justificar e desmentir, cada vez mais, suas recorrentes calúnias, perdendo terreno. Acuado pela Covid-19, acusado em relação à Amazônia, contestado pelo porte de armas, conspurcado pelos professores, ainda lhe restavam os evangélicos e os setores econômicos, bem servidos pelo ministro Guedes. Oportunistas, eles estão preocupados com a credibilidade do país, com a crescente miséria e até com suas próprias reputações, diante de clientes e correspondentes, acionando alertas e sinais vermelhos por toda parte. Quanto aos religiosos, esses não irão abandonar o presidente que tanto lhes queria bem, embora um grande número de fiéis não compreenda a política de forma clara. Lula é certamente o diabo – mas se ele ganhar, será graças à vontade divina! Nada a temer, a não ser alguns raivosos. Como prova, as sondagens mostram 80% de reprovação dos eventos de Brasília (IPSOS 2023). Fora Bolsonaro!
Lula é o milagreiro que o Brasil mais precisava. A partir de agora, sua glória mergulha tanto nos mistérios do candomblé quanto nos da santificação cristã. Na noite do primeiro turno, enquanto seus conselheiros lhe vendiam uma vitória por nocaute, ele via como um sinal a necessidade de fazer campanha para o segundo turno e pronunciou um discurso verdadeiramente religioso. Anunciar uma conferência climática em Belém tornou-se uma ação de graças. O velho chefe começa a se converter em profeta. Temeroso de que o retorno de Lula conheça uma sorte análoga ao retorno de Churchill ou de Vargas, Bruno Meyerfeld comenta para o Le Monde:
Lula não prejudicou sua reputação de diretor cinematográfico genial. No dia 11 de janeiro, ele ofereceu às câmeras uma nova imagem de poder irresistível, do mesmo gabarito que aquela de sua posse, no dia 1 de janeiro, quando ele posou na entrada do Planalto, nos braços do cacique Raoni Metuktire. Aos 77 anos, o chefe da esquerda brasileira permanece o mestre inconteste da simbologia política .
(Meyerfeld 2023b)
Algo realmente aconteceu! E o Brasil retorna a Lula, o Milagre – queiram os bolsonaristas ou não. O próximo milagre seria uma anunciação democrática que veria as diversas classes sociais e populações do país confraternizarem – uma festa da Federação, após um episódio autoritário abortado. Mesmo que esse não tenha sido o resultado do dia 8 de janeiro, Lula realmente merece a história na qual ele é um herói.
Desqualificar as eleições e as instituições
Sejamos claros, o modus operandi está muito datado. Supostamente, uma revolta popular daria um pretexto às forças armadas para intervir, instaurar um estado de urgência e suspender sine die o governo eleito. Esse esquema remete aos manuais insurrecionais que datam do final da juventude de Pelé, os mesmos anos sessenta que viram o auge das revoltas em massa e dos golpes de Estado militares – de Martin Luther King e das marchas contra a guerra do Vietnã, por um lado, e das ditaduras militares na Bolívia, no Brasil e no Chile, por outro. Guerrilha e contra-insurreição. Qualquer analogia com as revoluções árabes de 2011 seria equivocada: não se trata de colocar junto ao povo militares que serviram, por muito tempo, a um autocrata que se tornou senil – mas sim de convocá-los a sair da caserna, para aumentar ainda mais os privilégios de sua casta, bastante beneficiada durante o governo anterior. Afinal, não foi feito o anúncio de que 6000 militares, nomeados para funções civis, durante o governo Bolsonaro, deveriam reintegrar seu corpo de origem? Se ele houvesse sido bem-sucedido, esse golpe teria sido bastante similar aos putschs africanos – só que o Brasil, embora alguns pareçam esquecer, é dotado de um governo legítimo, eleito após uma competição eleitoral aberta e os brasileiros lutam, há mais de um século, para superar as sequelas da escravidão e vivem, como um pesadelo, o confisco das alavancas do poder por uma casta de milionários, mais dispostos a expatriar seus bens que a se solidarizar com seus concidadãos.
Por isso o fracasso da manobra. Ninguém entre os militares quis iniciar a ação. Mas, se os responsáveis pela manutenção da ordem em Brasília, que são próximos ao antigo presidente, estiverem na prisão, será possível comprovar sua cumplicidade ativa? Eles dirão que estavam sobrecarregados: ninguém deu a ordem de intervenção esperada pelos manifestantes. É possível reconhecer nas fotos dezenas de funcionários públicos que serão aposentados compulsoriamente. As forças da ordem agiram passivamente ao saque, antes que ocorresse a tardia intervenção dos batalhões de choque. Sem isso, o que teria acontecido? Mesmo que levantes houvessem acontecido em alguns cantões profundamente bolsonaristas do país, é difícil imaginar o novo governo caindo. Destinado a fracassar, esse início de insurreição ainda nos leva a pensar: as palavras de reconciliação de Lula, pedindo diálogo e respeito à constituição, ferem os militares convencidos de que a vitória lhes foi roubada por um conluio do Supremo Tribunal Federal com os analfabetos do Nordeste. O racismo é um cimento muito forte, mesmo que alguns pardos e indígenas sejam bolsonaristas.
O próprio Jair Bolsonaro se apresenta como um histriônico disruptivo e um anônimo antissistema, tornando mais palatável a identificação da pequena classe média urbana e branca com suas más maneiras e seu vocabulário de baixo calão. Sens Public editou, em 2020, um importante dossiê, Le neolibéralisme autoritaire au miroir du Brésil (Sauvêtre, Laval, e Dardot 2020). À luz da estreita vitória de Lula, é preciso compreender que os fatores do sucesso de Bolsonaro e os riscos corridos pela democracia brasileira ainda se fazem presentes: os autores apresentam tudo aquilo que é preciso saber sobre o aumento das desigualdades, sobre a fraca autonomia cultural das classes médias e sobre o fascínio pelo neoliberalismo doutrinário. Além disso, Ruy Fausto descreve as atitudes imoderadas de Bolsonaro, em 2019, com uma lucidez inquestionável. Abordaremos esse dossiê e o texto de Jesse Souza (2019a, 2019b), para compreender o conjunto de eventos que evoco aqui. Carregado pela onda antipetista nascida durante o segundo mandato de Dilma Roussef, que culminaria na prisão de Lula, esse homem sem qualidades adotou com habilidade os códigos do populismo. Além disso, sua linguagem grosseira simboliza uma franqueza estranha à classe política, mas se aproxima daquela que imaginaríamos presente em ordinárias cantinas militares – vestia-se sempre com roupas que o faziam parecer desengonçado e praticou, até o fim, exageros destinados a esconder o vazio de suas falas – quanto maior, melhor! Pagar militantes equipados de barras de ferro ou de pedaços de madeira para pegar um ônibus e tomar de assalto a Esplanada, em um domingo à tarde, significava contar com a doutrinação e a credulidade desses baderneiros e com sua cumplicidade, no mais alto nível – afinal, não seria suficiente contar com informantes e militantes, no seio da administração de Brasília, para criar a Festa da Selma – um grito de guerra, nas redes sociais.
Nos últimos debates eleitorais, mesmo tendo sido Lula o primeiro a sair do púlpito para se aproximar da câmera e entrar nas casas brasileiras, Bolsonaro levou com facilidade o duelo da presença física. Ele se permitiu agarrar o braço de seu adversário e impor assim uma simbologia de dominação. Em resposta, Lula decidiu permanecer em seu púlpito, desaparecendo um pouco das telas, enquanto Bolsonaro se exprimia. Ele, quaisquer que sejam as boçalidades ditas, colocava seu adversário em situação de subordinação, repetindo vulgares “Presta atenção, Lula”, sem economizar nas calúnias. Apesar de toda a sua experiência, Lula acabou por se deixar levar – exatamente o que desejava Bolsonaro. Incapaz de permanecer em seu programa presidencial, o antigo sindicalista apenas despertava: ele iniciou longos momentos de autojustificação, esgotou seu tempo de fala e deixou o palco para seu oponente. Se Bolsonaro tivesse preparado duas ou três declarações estruturadas, voltadas para o eleitorado ainda indeciso, teria levado a eleição. Ele foi o único autor de sua derrota.
É verdade que ninguém conseguia acreditar – naquele momento, talvez nem ele mesmo – que ele havia chegado tão perto de ganhar. Alguns dirão que Lula deve sua vitória à crença, insuflada por pesquisas imprecisas ou tendenciosas, de que Bolsonaro não tinha nem um terço dos votos. As alucinações geradas pelas pesquisas e a divisão geograficamente muito contrastada dos votos alimentaram a incredulidade de militantes bolsonaristas, nas regiões em que eles eram claramente majoritários, ou seja, grande parte dos centros urbanos, com exceção do Nordeste. Uma parte desses eleitores, alguns até pagos para agir, acredita que a vitória lhes foi roubada em plano nacional – viu-se na Esplanada cenas patéticas de militantes demandando justiça aos gritos, após terem acampado quase dois meses em frente às portas das casernas. Mas o sufrágio universal deu seu veredito, embora muito mal antecipado: não foram as elites cultivadas e fortemente divididas que expulsaram Bolsonaro, mas as massas dominadas de um povo desprotegido, que vive de expedientes e busca dignidade e respeito. O sorriso aberto de Lula, seus sofrimentos do passado, sua luta lendária pela divisão democrática, seu antirracismo visceral e suas propostas claramente orientadas para a educação, a promoção das mulheres e o respeito à legalidade fortaleceram a mobilização em todas as periferias: é hora de acabar com o desprezo!
Dois dias antes do ataque, a ex-presidente Dilma Rousseff avisava: na ausência de um movimento popular organizado, o novo governo será fraco. Expressão antecipada dos rumores de um golpe de Estado? A fuga para os Estados Unidos do presidente derrotado antecipava uma artimanha? Seu silêncio durante dois meses e o discurso do dia 30 de dezembro autorizaram e liberaram os organizadores de uma vasta mobilização nas redes sociais (Bolsonaro em Poder360 2022). Destacando os resultados obtidos em seu governo, apesar das crises, Bolsonaro fazia a promessa de se sacrificar pelo Brasil e atribuía a si mesmo o mérito de inspirar seus sucessores. Isso significava que a partida não havia terminado? Alguns dias mais tarde, seus apoiadores passaram à ação com o apoio tácito das autoridades de Brasília.
A tentativa de insurreição não visava apenas Brasília, mas as refinarias de regiões bolsonaristas do país – essa tentativa contou com ampla cumplicidade interna, devido à ausência de qualquer convicção republicana dos funcionários e dos quadros. Esse aspecto não menos grave, não acarretará processos judiciais. Tendo em vista que os militares acompanharam de perto os acampamentos bolsonaristas (e chegaram até a impedir que fossem evacuados pela polícia), teriam sido suficientes dois dias de bloqueio no país, para que o estado-maior declarasse Estado de sítio, paralisando assim a constituição do governo eleito. Substancialmente, foi isso que declarou o ministro Flávio Dino, no dia seguinte à tentativa de golpe. Ele admite que a equipe de transição governamental foi ferida pela ausência total de cooperação das autoridades policiais, militares e do DF, para garantir a segurança da transição, em razão da inoculação de valores exóticos nas instituições de Estado (Dino 2023, 56’-59’ da conferência de imprensa). A missão dos manifestantes era iniciar um processo em que se reconheceria o “povo de direita”. A inação das tropas encarregadas de impedir o acesso às instalações do Congresso tornou a depredação inevitável. Era um convite para a intervenção militar. A chegada das tropas de choque permitiu controlar rapidamente essa situação de perigo institucional. Prova, dizem os ministros, de que as autoridades de Brasília estavam em conluio. Tratou-se certamente do terceiro turno da eleição. Um saque da Praça dos Três Poderes, uma semana após a gloriosa posse de Lula! Um símbolo claro da perda de autoridade das instituições.
Bolsonarismo, um fato social total
Essas constatações nos alertam sobre a perenidade da administração de milhares de pessoas nomeadas por Bolsonaro e sobre a infiltração da extrema direita nas empresas. Tomemos como exemplo um empresário de uma cadeia de lojas, que declarou apoio formal ao governo (ele tem senso de negócios): quantos de seus conselhos administrativos estariam ligados a grupos familiares que visam, sobretudo, tirar do país o essencial de tudo aquilo que é taxável? A discrição do empresariado usou, durante todos esses anos, o burburinho das redes sociais como fachada. A sociabilidade digital, tornada universal, segmenta a população em pequenos grupos de interesses, em ruas e em vilarejos. Os grupos de WhatsApp dão uma amplitude inédita aos menores rumores e informam a rede, a título “preventivo”, da menor presença inabitual. Daí uma desconfiança generalizada de tipo hobbesiana: homo homini lupus. Diante dessa desconfiança generalizada, o autor do século XVII conclui que a paz civil supõe que o poder de castigar seja confiado a um príncipe que goze de total imunidade (não sendo afetado pelo medo, ele permaneceria imparcial). O bolsonarismo cultivava um discurso desse gênero contra bandidos de toda espécie, que supostamente circulavam impunes na sociedade. Ele se via em posse do Bem, eis seu parentesco com um poder de tipo teológico. Numerosos espíritos de ambos os sexos foram vítimas dessa palavra de ordem, que nós já havíamos detectado há muito tempo. Quem tem desgosto pela corrupção é convidado a viver o Bem na esfera privada, a dar o exemplo e a afastar-se dos canalhas. Esse é o operador reacionário dominante. Mais que propriamente fascista ou corporativista, ele se apresenta como o moralismo face ao imoralismo. Tendo em vista as desordens onipresentes, esse operador retórico não é passível de contradição – sobretudo, quando o contra-argumento implica em apoiar um Estado de direito que, segundo eles, deixa crimes impunes, promove o aborto e destrói a família. Ao apontar as carências econômicas e de serviços de transporte (por exemplo), fingem esquecer o investimento público, a gentileza e a competência de milhões de funcionários, tanto de setores públicos quanto privados, e dizem não chegar a lugar algum sem a indicação de alguém.
O coletivo não existe
A frase onipresente “Tem um jeito” permite reivindicar, aos olhos de um círculo mais fechado, uma certa forma de segurança, uma competência social comprovada – uma habilidade prática em uma situação. Isso tem tudo a ver com as análises de Luc Boltanski e Laurent Thévenot sobre as “justificações”. O bolsonarismo estaria intimamente ligado a uma “cidade familiar” e, ao mesmo tempo, a uma “cidade virtuosa”, dois filtros para pensar a “cidade da justiça”, que inclui o porte de armas e diversos tipos de vigilância generalizada[3], em oposição a representações democráticas da “cidade das regras”, da “cidade do conhecimento”, ou mesmo da “cidade mercante”, que têm como corolário a primazia do real (e de complexidades que exigem uma argumentação formal) sobre os esquemas ideais, normatizados por valores e não por fatos. De fato, é tentador voltar a essas dimensões epistêmicas para entender por que, contra todas as evidências dos vínculos da família Bolsonaro com grupos de milicianos, “o bolsonarismo é um moralismo”. Essa grande lacuna autoriza todas as transgressões – na véspera das eleições, vimos uma deputada bolsonarista e seu segurança, ambos armados, perseguirem um jornalista negro ameaçando atirar nele; a cena foi gravada e certamente comoveu alguns eleitores, até então indecisos. Sobretudo, ela descarta qualquer obrigação argumentativa do tipo consequencialista: agir em prol de seus interesses imediatos é uma obrigação que não permite exceções. Agir de outro modo significaria submeter-se a forças incontroláveis, a uma metafísica social que privilegia o coletivo abstrato, face a relações concretas etc. Nesse sentido, é fácil constatar que: se a maioria dos brasileiros está impregnada da preocupação de errar e de não estar à altura das relações sociais, emancipar-se desse constrangimento leva alguns a redobrar seus esforços, tentando fazer com que uma nova provocação ainda mais agressiva cale qualquer possibilidade de reparação, mesmo que simbólica, de um erro anterior. Quanto pior, melhor. Evidentemente, este esboço bastante impressionista não pretende substituir uma análise circunstanciada – ele pretende apenas mostrar como o moralismo, o egoísmo e o golpe de Estado coexistem para pessoas comuns, cujas ações são facilmente telecomandadas e para quem o coletivo não existe. Cada um que fique com sua merda.
No alto escalão, não é difícil compreender com que interesses o retorno de Lula irá romper: a onipotência dos militares, para quem o governo Bolsonaro foi uma chance única que não se repetirá; os caciques locais, cujos favores serviram para atrair uma clientela de empresários interessados; as igrejas evangélicas e seus pastores, que jamais se beneficiaram tanto de meios e de liberdade para aumentar sua audiência e captar milhares de pessoas sensíveis à atração de comunidades fraternas, que supostamente acolhem os desafortunados e propõem uma redenção que a sociedade está longe de ser capaz de conceder. A lista de interesses econômicos e corporativistas lesados pelo retorno do controle democrático seria ainda mais longa. O caso dos eleitos que devem seu mandato a Bolsonaro é mais ambíguo: com o decorrer dos acontecimentos, eles serão a ponta da lança do processo de reconquista do poder; caciques locais indispensáveis, procurados pelo poder, ou atores derisórios, que perderão suas posições à medida que deixarem de conseguir captar fluxos financeiros. A tática política, que consiste em impedir a direita de abandonar Lula e bloquear as reformas desejadas por ele, está em perigo. A estratégia dos bolsonaristas de ir até as últimas consequências deve forçar seus aliados a se comportarem como conspiradores, completamente atados a atos do passado – uma abordagem completamente mafiosa. Sem dúvidas, o saque da Esplanada tensionou bastante essa linha e o estado-maior bolsonarista não poderá impedir a debandada, sobretudo quando é preciso negociar financiamentos federais para projetos locais ou de determinados setores econômicos.
Propaganda e propagação
Restará uma minoria resistente no Congresso, que tornará difícil a menor reforma e sempre negociará vantagens durante as votações. Ela fará questão de mostrar aos evangélicos e às redes sociais que existe uma legitimidade extraeleitoral – essa é a base para a retomada do poder nas próximas eleições. O bolsonarismo tem toda a probabilidade de se fundir com grupos de interesses evangélicos. Esses não têm outra aliança e servirão como base da reconquista, evidentemente ligada a influências norte-americanas, de quem são emanação direta. O pentecostalismo bolsonarista já é um componente da paisagem social brasileira e, provavelmente, sua ala mais móvel. Assim como na fácil vitória de Bolsonaro em 2018, 49% do eleitorado do dia 30 de outubro é composto de brasileiros reais que estão, em sua maioria, muito longe do menor cinismo: evangélicos ou não, eles acreditam na corrupção financeira do PT, recordam-se dos escândalos que as mídias nacionais mostraram à exaustão, veem em Bolsonaro um político contra o establishment (apesar de todas as evidências contrárias) e toleram sem problemas sua incompetência. Além disso, a ideia de um governo competente lhes é estranha, é um puro oxímoro (eles não conhecem esse termo): isso jamais existiu. Metade dos brasileiros continua a dizer que o novo governo não fará melhor que o anterior. Os anos 2000 estão distantes e lidamos essencialmente com autoridades locais, normalmente nada brilhantes.
Debateremos a implicação do estado-maior trumpista. Eduardo Bolsonaro foi recebido por Trump em Mar-a-Lago, após a derrota de seu pai. Dois anos antes, ele se encontrava em Washington, logo antes do ataque ao Capitólio, e ficou claro que Steve Bannon declarava apoio direto aos golpistas do dia 8 de janeiro nas redes – ele se via como padrinho da internacional da extrema direita… Contudo, isso não indica um complô internacional contra Lula. Haverá bolsonaristas nostálgicos distribuídos em todo o mundo e talvez até imitadores: tratava-se de uma demonstração de força, projetada para sair do controle, e as investigações mostrarão quem fretou os 150 ônibus dos manifestantes e qual era o plano associado às palavras de ordem que circulavam nas redes. O The Guardian selecionou, no mesmo dia, as fotos mais espetaculares publicadas na imprensa (Williams 2023). No Brasil, o proletariado digital dos entregadores a domicílio acompanhou a passagem direta da economia informal para a desinstitucionalização de muitos serviços. O sistema de pagamentos via telefones (PIX) resolveu tão bem a questão das microfaturas, que terminou adiando a modernização dos empregos, a partir do desenvolvimento de competências – essa constatação pode ser estendida a todo o planeta. Eis o paradoxo da modernidade digital: ela imobiliza as condições de trabalho e estrutura uma “armadilha da pobreza”, que aprisiona milhões de empregados sem recursos em funções de pura sobrevivência. Com a concorrência das vendas online, as grandes redes populares sofrem. No Brasil, as Lojas Americanas estão em falência e a Magazine Luiza perdeu 80% de seu valor na bolsa, enquanto o Mercado Livre aumenta sua participação no mercado.
A desmaterialização do comércio acompanha a relativa queda do poder de compra e é acompanhada, por sua vez, pela perda de competências em relação aos empregos da economia residencial. Uma imagem sintetiza essa situação geral: as cidades não atualizam a sinalização rodoviária para competir com os sites de circulação, fazendo com que os motoristas de Uber pudessem invadir a competência dos táxis, que diminuíram com o tempo. A qualidade da informação “residencial” está em queda. Resta ao trabalho humano ocupar o último elo da corrente, ou tomar seu lugar antes da etapa de distribuição, tornando-se programador ou prescritor dessas mesmas correntes de informação. Em ordem crescente de complexidade, é preciso atualizar os catálogos e as referências – embora uma boa parte desse trabalho seja feita automaticamente. A validação dos algoritmos já é mais complicada para as máquinas, mas esperamos que a inteligência artificial faça trabalhos de marketing ou de modificação dos processos – aqui são necessárias cabeças bem formadas e os empregos estão concentrados nas sedes das empresas ou em modos de trabalho pseudodistantes. O capitalismo digital deixa então poucas esperanças para os trabalhadores de base. Em uma espécie de loteria, alguns escaparão de sua condição frequentando locais de aprendizagem, até obter uma vaga qualificada em algum lugar – visto que são necessários inúmeros agentes de manutenção para todos esses sistemas digitais. Outros simplesmente desaparecerão das telas, uma geração supranumerária. Estamos bem longe do aparente trumpismo, mas é interessante ver Bolsonaro reivindicar – falsamente – a paternidade do sistema brasileiro de micropagamentos, afirmando ser o responsável pela entrada da economia informal no mundo digital. Qual é a relação que se estabelece com a Internacional das direitas, com a qual contribuem efetivamente os campeões do digital como Peter Thiel e Elon Musk? Digamos que o tema do desencravamento seja central para compreender o que liga os libertários entre si. Através de uma rotação semântica do tema social do empoderamento, os partidários do neoliberalismo digital veem os sistemas de micropagamentos como elemento capaz de liberar as iniciativas, sem que seja preciso recorrer a instâncias públicas.
Nos anos 1980, a acepção do termo empoderamento coincidia claramente com o sentido da palavra francesa “capacitation”[4], mesmo que essa palavra seja historicamente associada, em inglês, ao termo capability. A palavra foi notadamente difundida no contexto de uma estratégia de luta contra a pobreza que permitia, por intermédio da formação profissional, que sistemas de empréstimos favorecessem pequenos investimentos locais etc. Uma capacitação de indivíduos e de pequenas comunidades, destinada a permitir que exerçam um certo controle sobre as arbitrariedades e possam comandar sua própria existência. Tal situação remete particularmente às teorias de Amartya Sen, que deu lastro ao termo, a partir de seus estudos sobre os famintos na Índia e as condições para evitar que eles existam – o que inclui uma imprensa livre, capaz de informar e criticar (Sen 2022). A capacitação, entendida nesse sentido, decorre da community organizing promovida pela escola sociológica de Chicago.
Sen propõe comparações de utilidade interpessoal, baseadas em uma grande variedade de dados. Sua teoria trata do acesso a benefícios, entendido como o acesso individual a bens que satisfazem necessidades básicas (comida, por exemplo), liberdades (no mercado de trabalho, por exemplo) e capacidades. Nós podemos fazer escolhas sociais baseadas em variáveis reais e melhorar assim a situação inicial[5].
(Wikipedia, sem datad)
Esther Duflo sucedeu Sen na lista dos Nobel de economia que confrontaram o desenvolvimento desigual. No fundo, trata-se sempre de permitir que boas informações circulem e que sejam consideradas por aqueles que praticamente não tinham acesso a elas. Uma capacitação efetiva aproveitará muito da difusão das bases digitais – Sens public inscreve-se plenamente nessa dinâmica. Mas isso não pode acontecer se temos uma população analfabeta, desprovida de estruturas de saúde pública e isolada pela falta de transportes públicos acessíveis. É vão tentar traçar uma linha dos investimentos públicos, desde as redes que fazem a conexão com as bases de conhecimento, sem as quais nenhuma capacitação é possível, passando pelo saneamento e pela água potável. Acima de tudo, a história da sociologia urbana mostra que as funções centrais dos animadores sociais são essenciais, encorajando o apoio de pessoas cuja vocação é transmitir a informação necessária para ampliar as possibilidades dos habitantes de determinados bairros – evitando que caiam nas redes de delinquência. Estamos nos antípodas do desterro, da repressão e da segregação e certamente fazemos parte de um projeto de aumento da qualificação dos territórios, um trabalho de formiga.
Logo, a evolução das representações associadas ao conceito de empoderamento está longe de ser inocente. O artigo da Wikipédia em inglês, que trata dessa noção, após evocar a autoestima, cita Margaret Thatcher e Milton Friedman (outro Nobel) , fundador do monetarismo e da crítica aos serviços públicos, cuja ação no Chile está diretamente ligada à origem das convicções de Guedes, o ministro da economia de Bolsonaro. Esse verbete expõe, de forma clara, que os economistas veem no empoderamento um retorno ao adágio “ajuda-te a ti mesmo e o céu te ajudará”, em oposição aos sistemas de amparo social, que eles dizem prender os pobres em uma lógica assistencialista. O conceito central já não é mais a capacitação, mas a noção curinga de oportunidade, que seria estar atento, adaptar-se e aproveitar as ocasiões que se apresentam, segundo um darwinismo social impenitente. Impossível ser mais direto: “a abordagem do empoderamento foca em mobilizar os esforços individuais dos pobres, mais do que em prover assistência social[6]” (Wikipedia, sem dataa). A escolha da Comissão Linguística do Québec[7] de traduzir empoderamento por autonomisation [8] põe em ação essa completa inversão, omitindo o contexto social do trabalho, que será substituído pela referência individualista da tomada de controle do indivíduo sobre sua própria vida: “sobretudo, o poder de indivíduos e de grupos sociais de agir diante das condições sociais, econômicas, políticas ou ecológicas com que são confrontados” (Wikipedia, sem datab). Embora haja uma referência à origem do conceito no contexto da organização comunitária, o que nos permite avançar para temas relacionados ao trabalho social, dentro da própria enciclopédia digital, não há nenhuma referência aos economistas do desenvolvimento - ou da escola libertária[9]. Prolongar essa análise exigiria retornar ao sentido filosófico da noção de autonomia, notadamente codificada por Kant, no século XVIII – em alemão Selbstständigkeit. O artigo da Wikipédia em alemão (Wikipedia, sem datac), ainda que bastante sintético, é mais preciso. Nele, o empoderamento faz referência direta ao processo de emancipação, que visa permitir a autodeterminação dos sem poder. Ele não oculta o sentido sociopolítico do termo com um véu individualista e valida o significado de capacidade do mesmo.
Reduzir essa noção a um objetivo de desenvolvimento econômico, por intermédio de supostos automatismos do mercado, modulados por alguns corretivos indispensáveis, é portanto bastante reducionista, na medida em que retira o conceito de capacitação de um contexto em que as alavancas da transformação importam, inserindo-o em um contexto individualista, que prioriza a responsabilização dos indivíduos diante de seus destinos. Torna-se claro que, a partir da ideia de empoderamento/autonomização, os libertários advogam por um desenvolvimento de sistemas de forte valor agregado, em detrimento daqueles que imobilizam uma forte dotação de capitais públicos: o YouTube no lugar da escola pública, por exemplo; a atribuição individual da responsabilidade de aproveitar oportunidades profissionais e de cumprir responsabilidades sociais e familiares; a redução de impostos, em vez de incluir os custos adicionais da inclusão social, da formação profissional e da descarbonização da economia na formação dos preços da energia e dos custos empresariais. Tudo isso teria relação com o apoio aos evangélicos, com a estigmatização generalizada da incompetência e da preguiça, com a promoção do mérito e com o ceticismo climático? Cabe ao leitor julgar.
Os bolsonaristas incontestes se veem como arautos do futuro e caricaturam a esquerda como um fantasma oculto de um passado de corrupção. Ao lado dos ideólogos do Estado mínimo que acabamos de evocar, alguns ainda acrescentam uma dimensão sacrificial de tipo religiosa. Todos são hostis ao parlamentarismo. Essa última característica os aproxima do fascismo italiano de um século atrás, que embora sirva frequentemente como amarra interpretativa, era muito mais estatocêntrico, não venerava o mercado e buscava a autarquia econômica. Ele não desejava privilegiar os setores exportadores da economia, em um quadro de divisão internacional do trabalho. Mesmo que de fato esperem a encarnação do chefe carismático, eles querem sobretudo fechar o parêntese democrático aberto há quarenta anos, cujo fim era anunciado por Bolsonaro, ao descredibilizar as instituições. Essa é a filiação do movimento com a ditadura chilena dos anos oitenta, que foi certamente adaptada à sociologia brasileira. A ideia de que Lula possa restaurar essas mesmas instituições lhes dá completo horror! A campanha de Bolsonaro enviava uma mensagem subliminar ao eleitorado: “contem comigo para preservar o país que vocês idealizam e para simplificar sua existência, a partir de auxílios direcionados, de sistemas de pagamentos eletrônicos e do culto a virtudes tradicionais, mas jamais por intermédio das instituições – viva o plebiscito e o porte de armas, a proteção de nossa liberdade e de nossas crianças”. Seu concorrente era caricaturado como agente de supostas fugas de capitais para o estrangeiro, de profanação dos valores familiares e acusado de ser apoiado por uma dispendiosa burocracia de esquerda e pelo Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro pontuava em seus discursos uma ode à liberdade incondicional, que garantia o porte de armas. Diante da ausência de mortes, no dia 8 de janeiro, ele e seus amigos disseram que as manifestações foram pacíficas – a intervenção sem excessos é mérito das forças da ordem e se não foram encontradas armas letais entre os manifestantes, isso sem dúvida se deve ao fato de terem recebido orientações. À medida que ocorrem os processos contra os autores desse dia funesto, o bolsonarismo permanecerá tema da atualidade, envenenando de modo durável o mandato de Lula. Será o presidente capaz de aplicar ao menos a pedagogia necessária para as reformas indispensáveis?
A fantasia de uma democracia plebiscitária antissistema
Uma vez mais, os editorialistas “oficiais” criaram uma armadilha para si. Eles declararam prematuramente que a saída de Bolsonaro retirava o apoio de parte de seus correligionários. Bruno Meyerfeld chegou a citar, nesse sentido, o novo ministro das relações exteriores[10]. A posse de Lula foi marcada por discursos expondo as prioridades sociais do governo e, ao mesmo tempo, pela investidura de Geraldo Alckmin, antigo governador de São Paulo, eleito vice-presidente da chapa de Lula, promovido a chefe da equipe de transição e atual ministro da Indústria e Comércio. Do passado (recente), façamos tábula rasa, é o que parecia dizer essa celebração eufórica, ao final de dois meses, durante os quais os partidários de Bolsonaro queriam acreditar que ele ainda lhes indicaria o que fazer. Foi prematuro acreditar, como numerosos eleitores de Lula o fizeram, que as chaves do país seriam restituídas a quem de direito? É irritante. Após a votação, temendo talvez alguma agitação, os companheiros de Lula, tornados respeitáveis novamente após as ignomínias de Bolsonaro, mantiveram-se discretos e se abstiveram de qualquer declaração. Os vencedores da eleição esperavam simplesmente que o tempo fizesse seu trabalho.
Das instituições às redes sociais
Ao invadir os centros de poder, os bolsonaristas esperavam expor as pretensões do cerimonial republicano e criar a realidade política que já contestavam de antemão, como coloca Peter Sloterdijk, em Aujourd’hui, il n’y a plus que des guerres de menteurs [11] (Sloterdijk em Brunfaut 2022). Ora, nessas condições, pouco importa se o dia 8 de janeiro foi produto de um excesso ou de uma conjuração. No dia seguinte ao golpe, o ministro da justiça comentou com simplicidade sobre o jogo de tolos daquele dia. As autoridades do DF subestimaram gravemente – ou esconderam do governo – aquilo que poderia acontecer na Esplanada dos Ministérios, contentando-se em dizer ao governo que os responsáveis pela manifestação aceitavam permanecer fora da Esplanada. Essa sequência de fatos valida as afirmações de Marcia Tiburi sobre o ridículo político:
De certa forma, a democracia torna-se espectral. Ela desvanece, no momento em que é posta em prática como mecanismo de reprodução do poder […] É uma cortina de fumaça, as roupas novas do rei que não podem ser consideradas ausentes, precisamente porque não existem, e devem então ser tomadas como uma fantasia coletiva com valor de verdade absoluta. Essa é a dimensão estética do populismo, o consenso de todos ao redor de uma mentira que se confunde com sua dimensão social.
(Tiburi 2021)
Meus anos de observação das superestruturas institucionais brasileiras me fizeram entender a forte desconexão dos comentaristas oficiais com o país real. O foco cotidiano dos boletins de informação, nas instituições formais, não fornece ao país nenhuma imagem de toda a sua complexidade. Interrogado no dia seguinte ao dia 8 de janeiro, Jânio de Freitas, jornalista nonagenário, assume que um jornalista pode declarar sua opinião. Tendo trabalhado na ditadura, a precisão da informação sobre os debates parlamentares, com o intuito de informar o país sobre as relações institucionais de força, era acompanhada da metodológica ausência de qualquer tomada de posição. Visto o estado da imprensa digital, Freitas vê a necessidade de não se mascarar diante do argumento da imparcialidade, que é finalmente equivocado (Silva Pinto 2023, 21’ - 23). Fato que não invalida a necessidade de se manter o mais perto possível de suas fontes. Assim, a ação de Flávio Dino foi capital para bloquear o putsch. Simplesmente, nenhum jornalista o seguia nesse dia, tampouco nos seguintes. Longe das decisões e sem uma preparação séria, a imprensa não capturou a tensão entre o governo e as autoridades de Brasília. A imprensa não se mostrou à altura dos desafios democráticos e contentou-se em fazer circular fotos, rumores e comunicados oficiais (Silva Pinto 2023, 29’). De fato, os jornais passaram uma semana buscando testemunhos… O Metrópoles apresentou, em primeira mão, a confirmação de que o palácio presidencial estava deserto, na tarde daquele domingo, e que os guardas não haviam recebido nenhuma orientação (Amado 2023). As redes sociais publicaram, sem precaução alguma, fotos denunciando os golpistas. A delação fazia parte dos métodos usados pelos procuradores contra o PT – mas tornou-se uma norma social (Meyerfeld 2023a).
Muito frequentados pelos editorialistas, os aeroportos de São Paulo e de Brasília não são locais adequados para medir os ânimos da população. Dominante, a Rede Globo (do poderoso grupo de imprensa da família Marinho) quase nunca dá a palavra aos brasileiros. A voz narrativa das reportagens, as declarações transformadas em citações projetadas e lidas pelos jornalistas e a quase total ausência de informações sobre regiões fora dos grandes centros urbanos produziram uma autointoxicação de longa data nos formadores de opinião, convencidos que essa editorialização da vida pública fala com os brasileiros, embora ela convença apenas a uma pequena camada urbana educada e majoritariamente conservadora. Os grupos de WhatsApp e as lives do Instagram proliferam em meio ao grande público, que assiste redes como a Record, próxima dos valores familiares e evangélicos louvados por Bolsonaro. Essa dimensão estritamente conservadora e moralista alimenta em fluxo contínuo as redes radicais, como assinalou o Washington Post, ao constatar que a supressão dos moderadores do Twitter no Brasil, após a compra da rede por Elon Musk, deixou correr livremente a fraseologia tecno-reacionária dessas redes.
Na França, Damien Leloup sintetiza o artigo:
Ao contrário do Meta/Facebook, que declarou por intermédio de Andy Stone que “nós seguimos a situação de perto e continuaremos a apagar mensagens que violam nossas regras”, entre os demitidos [do Twitter] em São Paulo, havia oito assalariados que eram especificamente encarregados da luta contra a desinformação e a incitação à violência. A plataforma também restabeleceu as contas de vários militantes bolsonaristas e conspiradores conhecidos, inclusive o perfil do deputado Gustavo Gayer. Uma mudança nada acidental na política: após sua chegada ao controle do Twitter, Elon Musk fez vários acenos à extrema direita brasileira, publicando diversas mensagens sugerindo a ideia de que os funcionários da rede social no Brasil eram de esquerda. Jair Bolsonaro, que encontrou Elon Musk em maio de 2022, saudou a tomada de controle de Musk da rede social. “É o início de uma relação que vai terminar em casamento”, declarou após o encontro.
(Leloup 2023)
Elizabeth Dwoskin destacou que as convocações para ataques direcionados às instituições, com o intuito de gerar o caos, se multiplicaram em fóruns extremistas e que as referências implícitas ao dia 6 de janeiro de Trump eram numerosas, assim como menções ao “Digam ao povo que fico”, alusão à declaração feita no dia 9 de janeiro pelo imperador D. Pedro I, ao anunciar que não voltaria a Portugal, o que no contexto atual significa o desejo de acampar na Esplanada. Tendo em vista o fiasco da empreitada, bolsonaristas mais raivosos decidiram, de imediato, que ela estará a serviço do Supremo Tribunal Federal e do governo Lula.
“Durante anos, nosso país tem passado por um processo muito forte de radicalização, que leva muitas pessoas a adotarem perspectivas extremistas – especialmente online,” afirmou ela. “Mas nas últimas duas semanas, vi crescer os apelos de pessoas incentivando o extremismo e pedindo ação direta, no sentido de desmantelar a infraestrutura pública. Basicamente, as pessoas estão dizendo que precisamos parar o país e gerar o caos.” […] O dia 6 de janeiro foi assunto de algumas postagens naquela semana, mas os enunciados apareciam em código, disse Viktor Chagas, professor da Universidade Federal Fluminense, no estado do Rio de Janeiro, que pesquisa movimentos de extrema-direita online. Além disso, disse Chagas, a patriotada de domingo foi “uma tentativa clara de imitar a invasão do Capitólio dos EUA, funcionando como uma reprodução dos movimentos trumpistas e um sinal simbólico de força e de conexões transnacionais da extrema direita global.” Chagas notou que o dia 9 de janeiro é um importante símbolo nacionalista do Brasil e marca o dia em que o primeiro governante do país, o imperador D. Pedro I, declarou que não voltaria a Portugal, o que ficou popularmente conhecido como “Dia do Fico”. “É como se os bolsonaristas estivessem equiparando Bolsonaro a D. Pedro I, indicando que o governo derrotado nas urnas permaneceria no poder”, disse. Algumas postagens ainda fizeram referência ao “Dia do Fico”, indicando que as demonstrações provavelmente continuariam durante a segunda-feira, acrescentou. A confusão ocorrida no domingo foi um “desastre”, disse Paulo Figueiredo Filho, apresentador do canal de extrema direita Jovem Pan, radicado na Flórida, que teve suas contas nas redes sociais bloqueadas por Moraes. “Foi o sonho molhado de Moraes[12]”.
(Dworskin 2023)
Esse povo quer ser visto
À força de servir a um discurso superficialmente moralizador, a grande imprensa encorajou um espírito de denúncia mimética em seus boletins de informação, um sentimento generalizado de impotência com relação à intriga dos poderosos e a sua impunidade e de desconfiança em relação às instituições, taxadas de proteger crápulas em nome das regras do Estado de direito, enquanto os pobres trabalham sem parar, são esmagados pela criminalidade e só se sentem protegidos em redes de proximidade que, na maioria das vezes, convidam seus membros a uma submissão conformista. Esse terreno é o cimento do bolsonarismo. Em 2015, na época em que a informação jogava ininterruptamente com as emoções, o “povo de esquerda” desapareceu das telas, em favor de slogans anti-Dilma e contra a corrupção do PT. Eles nunca reapareceram. Por sua vez, o movimento precursor do golpe de Estado parlamentar, fomentado pelo antigo presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (condenado posteriormente por lavagem de dinheiro), pelo então vice-presidente Temer e pelo movimento Vem pra rua, que sustentava ardentemente o juiz Moro, futuro ministro de Bolsonaro (cujos excessos, tolerados pelo STF em 2016, foram posteriormente censurados por essa mesma instituição), transformou-se em força coativa do bolsonarismo. É necessário um estudo preciso dos militantes antipetistas, durante a última década, para entender os eventos de janeiro de 2023. Ele certamente mostrará que
A hipnose e a produção de êxtase tornaram-se métodos políticos. Não é por acaso que a religião, a economia e a política se aproximam cada vez mais, visto que utilizam métodos similares. A sociedade da “sensação”, descrita por Türcke, é uma sociedade em que o controle dos corpos se exerce no nível da estimulação da percepção, através de uma estratégia de choques de diferentes intensidades. Os choques agem sobre os sentidos e sobre toda a sensibilidade dos indivíduos, cuja capacidade de percepção, em uma vida definida por condições digitais, não pode ser negligenciada.
(Tiburi 2021)
Enquanto o retorno de Lula tornava-se cada vez mais provável, Temer (principal beneficiário da crise institucional, entre 2016 e 2018) pedia por uma anistia geral, que permitisse ao país escapar da novela de um processo contra Bolsonaro. Será que ele ainda pensa assim? Editorialista reconhecido da Folha de São Paulo, Vinicius Torres de Freitas fala diretamente sobre o assunto. Segundo ele, a intrepidez bolsonarista se igualou apenas à placidez do PT, que simplesmente tolerou as convocatórias a um levante militar, assim como os acampamentos que se seguiram às eleições do dia 30 de outubro. Certamente, é chegado o momento de servir. Mas como fazê-lo? O país, à exceção de alguns símbolos, não se conhece em sua diversidade, refugia-se em convicções feitas e promovidas por grupos de iguais e vê diariamente triunfar, de tela em tela, o egoísmo individualista mais crasso. Em quatro anos, a contrapropaganda nas redes permaneceu sem efeito. Eis então confirmado o temor dos democratas brasileiros: o retorno de Lula ao governo não significa em nada uma reconciliação do país consigo mesmo. O saque da Esplanada pode vir até a endurecer a situação e a contribuir com a estruturação da oposição entre perspectivas completamente opostas: um caminho de divisão democrática contra uma lógica clânica e patriarcal. John Rawls ou Carl Schimitt? Essa será uma divisão insuperável.
A divisão geográfica do eleitorado foi o fator mais importante da eleição presidencial. Bolsonaro progrediu nos bastiões lulistas do Nordeste e fez eleger, por toda parte, um grande número de deputados e governadores. Sem a redução de seu avanço incrível de 2018, no estado de São Paulo, performance difícil de reeditar após quatro anos no poder, Bolsonaro teria sido reeleito: era preciso conquistar o voto de apenas 1% dos eleitores no plano nacional. Derrotado, ele continua sendo, para metade dos eleitores, o “capitão” próximo dos militares e dos empresários. De acordo com a posição sociológica de alguns, ele protegeu o país de uma reforma fiscal, restabeleceu o orçamento e privatizou algumas instituições, limitou o poder ideológico dos intelectuais de esquerda, favoráveis à liberalização dos costumes e corruptores da juventude, transformou uma parte dos impostos sobre as exportações em auxílio a cem milhões de pobres, ajudou a eleger milhares de deputados estaduais ou federais e nomeou funcionários em todos os níveis administrativos, juízes etc. Esse povo não quer desaparecer das telas. Além disso, é preciso estudar o bolsonarismo à luz da questão da visibilidade. Miséria e invisibilidade andam justa. Desta forma, é possível compreender, ao menos superficialmente, o prazer de parte dos brasileiros de se fazer visível, mesmo que limitados a um registro de clichês – do imaginário dos perfis do Instagram e do Facebook à predileção por carrões, por falar alto e por roupas chamativas e muitas vezes “excessivas”.
A adoção bolsonarista do uniforme da equipe nacional de futebol como símbolo de reconhecimento ganhou status de signo interclasses – as imagens do dia 8 de janeiro são um exemplo. Apesar da condenação universal suscitada pelo evento, a conjuração em Brasília assinalou uma certa glória sacrificial: eles são heróis e mártires, eles têm uma causa. Minha conversa com um pequeno empresário não deixa dúvida alguma: ele me dizia, de forma audaciosa, não estar nem um pouco interessado com o retorno de temas internacionais à política brasileira “se for para investir os recursos do país na África ou na Venezuela…”. É inútil replicar que Lula quer reanimar um mercado interno sufocado por uma baixa real dos salários, nenhum bolsonarista acreditaria em mim – sobretudo se ele se sente maioria.
Lula, o milagre, um mandato sob o olhar das grandes empresas
O Brasil escapou do pior, mas os desdobramentos do ataque em Brasília são de uma complexidade rara. Visto de longe, esse levante insurrecional é uma réplica exata do Capitólio, em Washington. Lá, era preciso impedir a declaração do resultado e “enforcar” Mike Pence, vice-presidente incumbido da tarefa. Em Brasília, atacar os edifícios desertos, em um domingo à tarde, deveria suspender a organização do governo Lula, após a proclamação de um estado de urgência pelos militares. Esses acontecimentos não são outra coisa que a aplicação da estratégia de forçar os limites, utilizada por Bolsonaro desde 2016, quando citou elogiosamente o torturador Ustra, no momento de votar o impeachment contra Dilma Roussef, presidente que foi torturada em sua juventude. Depois dessa provocação e de suas declarações absurdas sobre a Covid-19, tendo deixado a política sanitária aos governadores e se reservado o papel de macho corajoso, Bolsonaro posava de Duce, figura cujas transgressões revelam uma predestinação. No dia 30 de dezembro, ele declarou ver em sua eleição um sinal divino, mas nada havia preparado o parlamentar que ele era para esse papel; toda a sua confiança é no Senhor e ele não se arrepende de nada. É possível também que se lembre das lições recebidas durante sua formação militar: ele deve ter estudado as campanhas de Júlio César e ter ouvido falar da punhalada fatal de Brutus. Ao menos ele sobreviveu à facada – fato que recorda com lirismo a seus correligionários! Que ele medite também sobre o fato de que, não muito distante do Capitólio, está a Rocha Tarpeia, ou se lembre de seu falecido mentor, Olavo de Carvalho, cuja estratégia Marcia Tiburi sintetiza, apontando a desorganização preconizada por ele, para desnudar os ídolos democráticos:
A manutenção da hegemonia cultural da extrema-direita, através do culto à ignorância, à enganação e à desinformação, não seria possível sem o simulacro de erudição praticado por Olavo. […] Basta ver que ele usava a cultura para destruir a cultura, a linguagem para destruir a linguagem, assim como tantos usam hoje a política para destruir a política ». […] O desejo de ser um intelectual é uma constante entre homens jovens de classe média ou alta, que herdam as veleidades de poder da própria classe. É esse desejo que move os adeptos dos discursos de ódio nas redes: fazer parte de uma classe intelectual pela via do antissistema. Além de um prazer mórbido, o discurso de ódio é um capital cultural e social poderoso. Quem odeia não se sente imbecil.
(Tiburi 2022)
Operação política especial
Vários analistas notaram que o presidente candidato à reeleição hesitaria em lançar uma operação especial, se estivesse convencido de que venceria de forma leal. Certamente, com exceção do pequeno instituto de sondagem Paraná Pesquisas, que diziam ser financiado por Bolsonaro, os grandes institutos de pesquisa apontavam uma intenção de voto muito menor a seu favor. Seja por conta de uma falha das bases metodológicas de sondagem, ou de preconceitos cognitivos entre os funcionários dos institutos, isso produziu um conjunto de profecias autorrealizáveis, que falsearam o voto. Ou devemos acreditar que inúmeros eleitores tenham realmente mudado de ideia no último momento? Com base nessa frustração, a equipe de Bolsonaro estudou a eventual correção do resultado das eleições (Veleda e Alcantara 2023), mas foi provavelmente dissuadida por conselheiros e militares. Talvez seja esse o motivo do silêncio de Bolsonaro em novembro e do ressentimento de seus partidários, convencidos de que eram vítimas de uma manipulação, desde o final do primeiro turno. No período entre os dois turnos, a presença ativa de bolsonaristas nas ruas não tinha nenhum equivalente do outro lado.
Paradoxalmente, a incerteza eleitoral protegeu a democracia brasileira: os militares se recusaram a qualquer intervenção aberta, deixando Bolsonaro em sua campanha. Miraculoso nas urnas, ele elegeu vários de seus candidatos nas eleições locais e se apoiou neles para confortar o eleitorado das regiões onde era maioria e apoiar seus partidários nos demais locais. Também tentou se impor em Belo Horizonte e no estado de Minas Gerais, reputado por espelhar o voto do Brasil inteiro. Será que seu relativo fracasso entre os paulistas se deve à contribuição de Alckmin, o fazedor de reis, aliado de Bolsonaro em 2018?
As elites jogaram bem: elas cederam um pouco entre 2003 e 2013, depois confiaram seus interesses a Meirelles e em seguida a Guedes (ministros da economia entre 2016 e 2022). O país está no limite e Lula retornou para protegê-lo de uma explosão, mas sua missão tomou um rumo espetacular. Após a extirpação da esquerda, ainda era preciso impedir que o populismo arruinasse a credibilidade do país. Os ricos estão protegidos de uma possível revolução e os pobres deverão em breve agradecer pelos pequenos sacrifícios que terão que fazer – será que o ministro poderá taxar apenas os imóveis de luxo, nicho fiscal tradicional do país? Já se sabe que o salário mínimo não irá aumentar e que a seriedade fiscal será de rigor – o ministro visa um déficit zero em 2024 (Haddad em Poder360 2023, 52’): não privatizaremos a Petrobras, mas nos ateremos aos lucros que essa empresa pública dará. Geraldo Alckmin é duplamente vencedor: em 2018, contra Haddad, ele colocou Guedes no poder e agora controla o Haddad nomeado ministro, em nome dos industriais e dos empresários. Sua primeira reunião foi com o presidente da Bayer, empresa diretamente ligada à agroindústria.
A aventura bolsonarista se conclui com o suicídio político representado pelo saque da Esplanada. Essa mascarada final expõe a verdade sobre um episódio que envolveu a captura do eleitorado brasileiro por clichês midiáticos e por atalhos ideológicos, levando à dessacralização completa do jogo institucional. Nesse contexto, a partida era quase impossível para Lula, considerando uma política fundada na clivagem explícita entre os que possuem, assimilados aos rentistas, e os que trabalham, vistos como desafiadores. No tempo das telas, essa clivagem desapareceu, em benefício de representações flutuantes: diante das massas inertes e cativas, há influenciadores de toda espécie. A maioria dos brasileiros está presa em situações de vida fixadas e estabelecidas de antemão. Resta-lhes apenas a associação a uma esperança escatológica (oferecida pelas religiões) e os subsídios estatais, auxílios magros que não dizem a que vêm. Nesse jogo, a direita passa a angariar o voto popular, pois não condiciona sua oferta a nenhuma contrapartida: não é preciso trabalhar ou pensar em mudar sua condição – aquilo que os políticos de esquerda têm tendência a propor, seja por convicção, seja para justificar a utilização do dinheiro público ou finalmente porque o socialismo seculariza a promessa messiânica. Será realmente preciso ser convincente para solidificar esse projeto em quatro anos!
Além do voto do povo humilde do Nordeste, tradicionalmente ligado ao PT, devido à memória das lutas de emancipação contra os antigos senhores e coronéis, Lula deve sua eleição às classes médias urbanas. Preocupada com o projeto educacional e com a ascensão social de seus filhos, essa parcela da população deseja se distinguir dos pobres ociosos e dos arrivistas afortunados. A mensagem principal de Lula é para ela. Lula, o milagre, não mostrou a mínima capacidade de inovação: ele mostrou sobretudo seus feitos dos anos 2000, verdadeira era de ouro do Brasil. Seu esquema parlamentar permanece antigo e não está adaptado à realidade política do país, mas coincide ao menos com o modo de representação da imprensa, que fornece uma estrutura previsível para a veiculação de informações, feita por apresentadores inamovíveis. A grande mídia está longe de abraçar as orientações concretas de uma sociedade atormentada por um individualismo divisionista e um provincialismo regionalista, contrário a todo interesse nacional compartilhado. Centradas em uma pedagogia paternalista, elas perderam a mão e abandonaram a hegemonia cultural, em favor das redes digitais de proximidade. As consequências disso são imprevisíveis.
Se as cidades majoritariamente bolsonaristas não aceitarem um governo Lula-Alckmin, que irá transferir o dinheiro do Sul para o Nordeste, o programa apresentado por Lula – desmatamento zero, fome zero, saúde, moradia, transporte e educação para todos – será inaplicável. Mesmo sem utilizar-se oficialmente de Bolsonaro, o Congresso recusará toda reforma fiscal e paralisará o governo. Sem Lula, o milagre, o país encontrará novamente suas divisões.
Que hegemonia cultural?
Retornamos às considerações de Gramsci sobre hegemonia cultural. Sem a reconquista da opinião, a vitória de Lula será fogo de palha. Após aquele período de dez anos, fica claro que reformas sociais, desassociadas de um discurso estruturado e destinado a permitir que a população meça os mecanismos democráticos, são incapazes de assegurar essa hegemonia. Os termos colocados no debate a favor ou contra Bolsonaro não são bons, desde o começo: o léxico antibolsonarista certamente opõe o ódio à inclusão e acusa o campo adversário de ser puro lixo e de suscitar a vergonha nos democratas. Mas não basta desqualificar o adversário. Richard Lapper dizia simplesmente que a extrema direita está engajada em uma maratona, da qual pode sair vitoriosa
De fato, os líderes da extrema direita brasileira com visão mais ampla, como Hamilton Mourão, antigo vice-presidente, e Tarcísio de Freitas, antigo ministro da infraestrutura de Bolsonaro, eleito governador de São Paulo, estão jogando um jogo muito mais longo. Eles estão determinados a se fortalecer com a crescente popularidade do conservadorismo social, na sociedade brasileira, nos anos mais recentes, o que se reflete, por exemplo, no crescimento das igrejas evangélicas protestantes. Nas eleições de outubro, a direita teve ganhos no Congresso, aumentando sua representação, quando comparada a 2018, ano que foi considerado o ápice do avanço conservador até então. Ela vai agora procurar fortalecer seu capital político e não pensará duas vezes, se necessário for, em dispensar o homem que está lambendo suas feridas na Flórida[13].
(Lapper 2023)
Por não terem disputado programa contra programa, os dois campeões se aferraram aos sentimentos coletivos. Insuflar a repulsa pelo outro candidato é a regra do sufrágio universal. Nesse jogo, Lula ganhou regularmente: ele desacreditou sabiamente seu adversário, evitando a armadilha de manchá-lo desnecessariamente. Em sucessivos debates, ele pôde mostrar o vazio do projeto social de Bolsonaro. Quando Lula perguntou sobre seus projetos políticos em saúde, educação e moradia, pontos centrais de seu programa, vimos o presidente vituperar incessantemente contra um PT corrupto, interessado apenas em financiar os desacreditados regimes de Caracas e de Havana… Ao responder às acusações pessoais de Bolsonaro contra si (acusado de ser um ladrão que arruinou as contas públicas), Lula fala em acabar com o desmatamento e coloca no centro de suas falas a dignidade das mulheres, a formação da juventude para um futuro melhor e a indispensável restauração das instituições democráticas. Os enraivecidos bolsonaristas não se enganaram ao investir contra as instituições centrais de Brasília! O fato de haver entre eles inúmeros funcionários dessas mesmas instituições confirma a noção bolsonarista de que elas são espólios de guerra, cujo saque deveria assegurar-lhes a impunidade. Hoje, é responsabilidade de Lula expor claramente as feridas de onde saíram esses espectros fascistoides: ignorância, submissão, desigualdade e resignação – isso é essencial – e cauterizá-las: educar, sancionar, investir, promover. Esse é o programa de uma geração.
A ficção do político permanecerá, portanto, senhora do teatro brasileiro. Até o último dia, a transição ofereceu um espetáculo de tratativas entre partidos, dando origem a um governo dividido entre a “ala social” e a “ala empresarial”, dirigida pelo vice-presidente Alckmin. Para compreender o sentido dessas negociações, podemos retomar o discurso pronunciado por Lula, na noite do primeiro turno, que soou como uma tempestade para os ouvidos daqueles que já sonhavam com a obtenção de 50% dos votos indispensáveis. De maneira surpreendente, esse discurso tornou-se impossível de encontrar nas redes eletrônicas e terei que me contentar com minhas anotações e a transcrição parcial da transmissão ao vivo: após os agradecimentos habituais e algumas passagens bem-humoradas, destinadas a mascarar a decepção generalizada por não ter sido eleito no primeiro turno – é verdade que Lula ganhou menos de 5% de votos entre os dois turnos – Lula agradece a Deus por sua carreira e declara e ter enfrentado a máquina do Estado, não um candidato. Ele afirma que o povo decidiu por uma coalizão pela democracia, o respeito por todos, a fraternidade entre todos nós. Ele expressa sua gratidão ao povo brasileiro que deixou a fome de lado e foi votar. Esse povo espera prosperidade e justiça, políticas de qualidade e cultura. A democracia, diz Lula, é sensível ao cotidiano, ela é concreta. É preciso construí-la dia após dia.
Sobre a economia, Lula declara seu apoio aos pequenos empreendedores. Ele irá se engajar em lutas contra a violência e pela igualdade das mulheres, contra o racismo e a discriminação. O Brasil é o país de todos, lembra Lula. Um só país, uma grande nação. Contra o ódio. Ninguém deseja morar em um país em guerra – nós estamos cansados de briga – abaixo às armas. Viva a vida.
Tudo precisa ser refeito, clama Lula. “Nós devemos construir uma república que pratique verdadeiramente as virtudes cristãs… Nós devemos acabar novamente com a fome, esse é meu primeiro compromisso. Moradia e inclusão social vêm logo depois. Chega de desigualdades sórdidas. Nós devemos retomar o diálogo dentro da harmonia entre os poderes. E com respeito à Constituição”, diz ele. Além disso, ele organizará conferências nacionais para formular suas políticas!
Lula insiste que o mundo sente falta de um Brasil que contribua com o desenvolvimento do planeta e que seu governo deve restabelecer a previsibilidade e a estabilidade. Ele se diz contra os vetos dos membros permanentes do Conselho de Segurança e favorável à criação de um quadro internacional para a Amazônia – respeitando a soberania – para alcançar uma pacificação ambiental.
“Não nos interessamos”, diz ele, “por polêmicas estéreis e aderimos às propostas do Papa Francisco: ‘que a esperança seja mais forte que o medo’. Vamos praticar o amor ao próximo. Paz, amor e esperança, unidos pelo Brasil”. Ele conclui: “Vamos aproveitar nossa oportunidade! E com Alckmin! Contem comigo: o que envelhece é a ausência de projeto!”
Appendices
Notes
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[1]
Eu esbocei uma reflexão sobre a questão da confiança em meu artigo, La fête Temer , (2016).
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[2]
Sobre o trabalho da APIB, eu encaminho o leitor ao Dossiê de Junia Barreto Voix Indigènes, Pistes pour un renouveau du Brésil (Barreto 2022a) / Vozes indigenas; Trilhas para renovar o Brasil (Barreto 2022b) e ao site da APIB ; sobre as iniciativas das favelas, recorre-se às contribuições de Roberto Ponciano (2021a, 2021b) e, por exemplo, ao site Voz das comunidades, onde Rafael Costa publica as falas de Anielle Franco, nova ministra de Lula (Costa 2023).
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[3]
Essa vigilância acompanha ontologicamente os regimes autoritários. Nos últimos anos, a China produziu sistemas de vigilância em tamanha escala, que a queda de preços permitiu que instituições e particulares do mundo inteiro pudessem se equipar. (Leplâtre 2023).
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[4]
Capacitação.
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[5]
Nossa tradução. Trecho original em inglês: Sen proposes interpersonal utility comparisons based on a wide range of data. His theory is concerned with access to advantage, viewed as an individual’s access to goods that satisfy basic needs (e.g., food), freedoms (in the labor market, for instance), and capabilities. We can proceed to make social choices based on real variables, and thereby address actual position.
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[6]
Nossa tradução. Trecho original em inglês: The empowerment approach focuses on mobilizing the self-help efforts of the poor, rather than providing them with social welfare.
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[7]
Office québécois de la langue française (OQLF). Nota do tradutor.
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[8]
Autonomização.
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[9]
Essa ideia é encontrada apenas na referência a um artigo de Anne-Emmanuèle Calvès (2009), que teve uma espécie de duplo redigido por Marie-Hélène Bacqué et Carole Biewener (2013).
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[10]
O novo ministro das relações exteriores permanece fiel a antigas ilusões. Ele hoje se recusa a fazer a menor das declarações contra Putin, que será certamente convidado para todas as reuniões da cúpula do BRICS. Se ele declara a posição do Brasil contrária à invasão da Ucrânia, “nós não faremos sanções a menos que estas sejam aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU”, essa é uma maneira de se mostrar neutro, embora a Assembleia Geral da ONU já tenha condenado a Rússia duas vezes, o que permite que seus membros ajam. Visto o ativismo das redes sociais russas e a conivência delas com a extrema direita internacional, nós não podemos deixar de nos surpreender com a ingenuidade do novo ministro (Meyerfeld 2023c).
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[11]
Atualmente não há nada além de guerras de mentirosos, em tradução livre.
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[12]
Tradução nossa. Trecho original em inglês: “For years now, our country has been going through a very strong process of radicalizing people to extremist views – principally online,” she said. “But in the last two weeks, I’ve seen ever-growing calls from people incentivizing extremism and calling for direct action to dismantle public infrastructure. Basically, people are saying we need to stop the country in its tracks and generate chaos.” […] If Jan. 6 is referenced, as it was in a handful of posts this week, the utterances appear in code, said Viktor Chagas, a professor at Fluminense Federal University in Rio de Janeiro state who researches online, far-right movements. Still, Chagas said, Sunday’s riot was “a clear attempt to emulate the invasion of the U.S. Capitol, as a reproduction of Trumpist movements and a symbolic signal of strength and transnational connections from the global far right.” Chagas noted that Jan. 9 is an important nationalist symbol in Brazil, marking the day the country’s first ruler, Emperor Dom Pedro I, declared that he would not return to Portugal, in what is popularly known as “I Will Stay” Day. “It is as if Bolsonarists were equating Bolsonaro with D. Pedro I, and indicating that the former government will remain,” he said. Some posts have also referenced “I will stay day,” indicating that the demonstrations would probably continue through Monday, he added. The mayhem Sunday was “a disaster,” said Paulo Figueiredo Filho, a presenter for the right-wing channel Jovem Pan who lives in Florida and has had his social media accounts canceled by Moraes. “It is Moraes’s wet dream.”
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[13]
Tradução nossa. Original em inglês: In fact, the more far-sighted leaders of Brazil’s far-right such as Hamilton Mourão, the former deputy president, and Tarcisio de Freitas, Bolsonaro’s former infrastructure minister and recently elected governor of São Paulo, are pursuing a much longer game. They are determined to build on the increased popularity of social conservatism within Brazilian society in recent years, which is reflected in the growth, for instance, of the evangelical Protestant church. In last October’s election, the right made gains in congress, increasing its representation compared to 2018, a year that had been thought to be a high-water mark of conservative advance. It will now seek to build on this political capital and won’t think twice, if necessary, about dispensing with the man nursing his wounds in Florida.
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